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Entrevista: Vanguart reencontra a estrada e o próprio som em “Estação Liberdade”

Vanguart
(Foto: Andrei Moyssiadis)

O Vanguart, banda mato-grossense conhecida por sua poesia melódica e intensidade emocional, retorna aos trilhos com “Estação Liberdade”, seu oitavo álbum de estúdio, lançado nesta sexta-feira (17) nas plataformas, pela gravadora Deck. Após um hiato de dois anos, o grupo – hoje formado oficialmente por Hélio Flanders e Reginaldo Lincoln – volta à cena com um trabalho que celebra o reencontro: consigo mesmos, com o público e com a essência que os consagrou desde o início dos anos 2000. 

Gravado sob produção de Rafael Ramos, o novo disco surge como uma travessia entre o passado e o presente, com letras que exploram o amor, as despedidas e o ciclo da vida. Mais do que um lançamento, “Estação Liberdade” marca o renascimento de uma banda que, após duas décadas de estrada, aprendeu a abraçar suas próprias cicatrizes e a transformá-las em arte.

Kintsugi musical: a arte de reconstruir-se

Vanguart
(Foto: Andrei Moyssiadis)

Há um conceito japonês que parece traduzir perfeitamente o espírito de “Estação Liberdade”: o kintsugi. Essa técnica ancestral consiste em restaurar cerâmicas quebradas com ouro, de modo que as rachaduras se tornem parte da beleza da peça. 

No novo álbum, o Vanguart faz algo semelhante com sua própria história. Após o isolamento da pandemia e um período de pausa, Flanders e Lincoln reaparecem inteiros – não por ignorarem as fissuras, mas por terem aprendido a valorizá-las.

O disco se constrói sobre essa filosofia da imperfeição e da resiliência. Cada faixa soa como um fragmento colado com cuidado, refletindo tanto a maturidade quanto o frescor de quem recomeça com os pés firmes no chão. 

Logo na faixa de abertura, que dá nome ao álbum, o verso “O nosso amor vai surpreender o fim” sintetiza o espírito do retorno: uma declaração de sobrevivência, tanto artística quanto emocional.

Os arranjos, que mesclam sopros, cordas e harmonias de violão, conduzem o ouvinte a uma viagem sensorial pelas paisagens internas da banda. Em “Luna Madre de La Selva”, Hélio Flanders reencontra a latinidade de suas origens cuiabanas, evocando as sonoridades dos primeiros álbuns. 

Já “O Mais Sincero”, assinada por Lincoln, resgata o vigor pop dos grandes momentos do Vanguart, daqueles que facilmente grudam na memória. “Rodo o Mundo Todo no Meu Quarto”, com arranjo de madeiras e sopros de Alberto Continentino, mostra o lado lúdico e introspectivo do duo, enquanto “Pedaços de Vida” mergulha na densidade emocional de um artista que aprendeu a ver beleza até nas dores que o moldaram.

O resultado é um disco que, como um trem em movimento, alterna estações de euforia e melancolia, de partida e reencontro. E, quando o álbum chega ao fim, resta a sensação de que o Vanguart retomou o próprio vagão, seguindo viagem com alma lavada e coração desperto.

Entre trilhos e lembranças: a liberdade de seguir em frente

Vanguart
(Foto: Andrei Moyssiadis)

Desde o início da carreira, o Vanguart sempre foi guiado por uma inquietação poética. Fundado em 2002 por Hélio Flanders, o grupo se consolidou em 2005 como uma das vozes mais autênticas do indie brasileiro. Agora, vinte anos depois, “Estação Liberdade” soa como um reencontro com as origens – não no sentido de repetir fórmulas, mas de revisitar o passado com o olhar amadurecido de quem percorreu longas distâncias.

Os versos de “A vida é um trem cheio de gente dizendo tchau” capturam esse sentimento de passagem e transitoriedade. A metáfora do trem, aliás, permeia todo o disco: uma viagem simbólica entre o que ficou e o que está por vir. 

Em canções como “Rua do Passado”, a dupla reflete sobre o tempo e as memórias, enquanto “Se Quiser Seguir Comigo” encerra o álbum com a serenidade de quem aceita o fluxo natural da vida: “Vou buscando quem sou / Por vilas e velhas estradas / Em velhas e novas moradas”.

Com o apoio dos músicos Arquétipo Rafa (bateria e percussão), Rodrigo Tavares (piano, Rhodes, órgão e sintetizadores) e Rick Ferreira (steel guitar), o álbum ganha corpo e textura. A produção de Rafael Ramos, embora com toques de polimento pop, mantém a delicadeza das letras e o vigor das vozes de Flanders e Lincoln, que se entrelaçam em arranjos cheios de nuances. 

Há momentos em que menos seria mais – como na intensa “Pedaços de Vida”, em que a carga emocional poderia brilhar ainda mais sem tanto instrumental –, mas essa escolha também reflete o desejo do Vanguart de se abrir a novas possibilidades sonoras sem perder sua identidade.

O toque de folk e country em “Obrigado (Só Penso em Você)” revela outra faceta do álbum: uma leveza que se contrapõe à densidade de outras faixas. A gaita de Flanders adiciona um tom nostálgico, enquanto o coro reforça a parceria e a cumplicidade que ainda definem a relação entre os dois músicos. 

Já “Canção do Estetoscópio” traz uma vibração roqueira, lembrando que o Vanguart nunca deixou de ser uma banda que mistura introspecção e energia, poesia e palco.

Mais do que uma coleção de músicas, “Estação Liberdade” é um manifesto sobre o tempo e a persistência. Em um mundo acelerado, onde tudo parece descartável, o Vanguart opta por olhar para trás com respeito e seguir em frente com calma. Cada faixa funciona como uma estação dessa viagem: há a saudade do que passou, o encanto do que se vive e a esperança do que ainda está por vir.

Uma nova parada, o mesmo coração

(Foto: Andrei Moyssiadis)

Ao longo de vinte anos, o Vanguart construiu uma trajetória marcada por sensibilidade e coerência. O hiato recente não representou um fim, mas um período de amadurecimento silencioso. Agora, em “Estação Liberdade”, Flanders e Lincoln mostram que as pausas também fazem parte da música – são os respiros entre um acorde e outro, o espaço onde nasce o novo.

O título do álbum não é apenas uma metáfora: é uma declaração de princípios. “Liberdade”, aqui, significa a possibilidade de seguir em frente sem amarras, de revisitar o passado sem se prender a ele. O trem que simboliza o disco pode até carregar lembranças, mas segue em movimento, conduzido pela vontade de criar e se reinventar.

“Estação Liberdade” é, portanto, um álbum sobre o poder da continuidade. Sobre como o tempo, mesmo implacável, pode ser também um aliado. E sobre como as cicatrizes – assim como no kintsugi – não diminuem a beleza de uma obra, mas a tornam única.

Hélio Flanders e Reginaldo Lincoln, agora em formato de dupla, reafirmam o que sempre esteve no cerne do Vanguart: a busca pela canção perfeita, aquela que traduz o invisível em som. E, ao embarcar novamente nesse trem, a banda convida o ouvinte a fazer o mesmo – seguir viagem com o coração aberto, aceitando que cada estação, por mais breve que seja, é parte essencial da jornada.

Confira a seguir, o bate-papo exclusivo que o Brasil Fora da Caverna teve com Flanders, sobre o processo de criação do novo disco:

BFC – Em uma entrevista recente, vocês mencionaram que este é um álbum mais “cru” e “direto”. Como foi o processo de desapego — tirar camadas, arranjos e ornamentos — até chegar à essência das músicas?

Helio – Entramos em estúdio em trio, com baixo, bateria e violão. Isso ajudou muito a erigir os arranjos de maneira simples, tendo depois a opção de colocar mais instrumentos e arregimentação, de acordo com o que pensávamos ser necessário para cada canção. Anteriormente, fazíamos os arranjos em seis pessoas, o que já trazia obrigatoriamente uma enorme gama de instrumentos, melodias, jogos harmônicos… a escolha do trio foi para justamente “limpar” um pouco o som, à fim de que a letra e a melodia viessem em primeiro plano.

BFC – O disco fala de partidas, chegadas, morte, sonhos… Vocês acreditam que esse álbum é também uma reflexão sobre o tempo — e como ele muda a forma de amar e criar?

Helio – Acredito que sempre falamos disso, o tempo e as coisas que vão acontecendo na vida sempre foram, naturalmente, nossos temas centrais. O que acontece é que agora não somos mais tão jovens e passamos por muito mais coisas, então esse tempo é outro… mais cicatrizes, mais alegrias, mais aprendizados.

BFC – Há algo de realismo fantástico nas letras. Quais são os “mundos invisíveis” que o Vanguart tenta revelar neste trabalho?

Helio – Acho que sempre habitei, como compositor, um pouco desse universo do realismo fantástico, às vezes até sem me dar conta. Li Kafka na adolescência e gostei muito, depois Borges, Bioy Casares, mas na hora de escrever isso tudo parece ficar numa gaveta no fundo da mente. Nossa primeira composição em português, quase vinte atrás, trazia os versos “Hoje é terça-feira e todos os meus amigos voam”, e este é um caminho que de certa forma reencontramos nesse álbum. Acredito que a solidão da pandemia e os micro apartamentos em que nos encerramos na cidade grande acabaram contribuindo para que esse “mundo paralelo” fosse retomado, também. Há algo de pueril, no melhor dos sentidos, em “Rodo O Mundo Todo No Meu Quarto”, por exemplo, que me agrada, por trazer uma leveza em um grupo de canções às vezes muito duro: “No espelho reconheço a criança / que ainda mora dentro de mim // Sou sozinho / Sou feliz / Meu caminho / Ninguém me arranca da minha raiz”.

BFC – Quando vocês cantam “O nosso amor vai surpreender o fim”, estão falando de um amor romântico, da banda ou da arte de resistir no Brasil de hoje?

Helio – Essa letra nasceu, sim, da ideia de um amor romântico, e depois eu percebi que poderia ser um retrato sobre a minha própria experiência com o Vanguart, e com o ato de fazer música e arte no mundo. Depois de tantos anos, tantas perdas, pausas, retomar a banda traz sim a alegria da surpresa de “surpreender o fim”, encontrar as coisas que você já conhece, mas vê-las com uma energia inédita, uma alegria pura de quem está apenas (re)começando. 

BFC – Como foi abrir espaço para outros músicos — como Rodrigo Tavares e Alberto Continentino — sem perder o núcleo emocional da banda?

Helio – É sempre enriquecedor trocar com artistas tão criativos… e eles vieram depois de as canções estarem bem estruturadas, então foi apenas uma grande cereja criativa e carregada de beleza que eles colocaram nas músicas, ficamos muito felizes com o resultado.

BFC – O Vanguart sempre transitou entre o poético e o político. Onde vocês se enxergam hoje: como cronistas da alma ou cronistas do tempo em que vivem?

Helio – Eu acredito que hoje temos grandes cronistas do tempo em que vivemos, essencialmente vindo do rap, e nós sempre preferimos pegar o caminho da poética mais existencial. Tenho tido muita vontade de falar sobre nossas origens, atualmente, sonhado com o Pantanal, por exemplo… acho que sigo escrevendo porque estou em busca de um tempo que não existe mais, o que pode ser visto de forma triste, mas é também o que vai me permitir inventar um mundo novo dentro da minha própria escrita.

BFC – Em que momento uma canção de vocês deixa de ser só uma composição e se torna algo que “fala” com vocês de volta?

Helio – Geralmente quando a canção nasce, ela já tem voz, altura, cor, penteado, sapatos (risos). Brincadeiras à parte, quando a música nasce, ela já tem cara de Vanguart, e quase sempre sabemos se ela vai funcionar ou não. Depois de lançada, às vezes acontece das canções meio que criarem vida própria por conta do público. “Olha Pra Mim”, por exemplo, do nosso terceiro disco, foi uma música muito despretensiosa e hoje é uma favorita das pessoas, o que acaba fazendo com que a canção ganhe mais significado para nós também.

BFC – Vocês têm quase duas décadas de estrada. O que ainda é um mistério para o Vanguart dentro do próprio Vanguart?

Helio – Acho que fomos criados dentro desse mistério, como caminhar no escuro sempre, nunca pensamos em como devemos soar ou fazer as coisas – e isso segue existindo. Quando chegamos no estúdio para arranjar uma canção, nunca sabemos se aquilo vai dar certo.. quando subimos no palco, nunca sabemos como aquele show vai terminar. Acredito que escolhemos viver certos perigos para que o coração continue batendo ansioso, temeroso, inseguro, pois isso é o mais próximo que podemos chegar de uma essência inicial, uma felicidade quase juvenil… colocar-se à disposição tanto do erro quanto do acerto. 

BFC – Se o Vanguart tivesse que se despedir de tudo, qual seria a última canção que vocês tocariam — e por quê?

Helio – Acredito que “Obrigado”, do álbum novo, é uma canção que caberia bem para esse momento. Somos gratos a muitas pessoas por termos chegado onde estamos, especialmente o amor que nossos fãs sempre dedicaram à nós. Saber que fazemos parte da vida das pessoas de maneira tão natural, espontânea, é seguramente o maior dos presentes que um artista pode receber. 

Ouça abaixo o novo álbum, “Estação Liberdade”:

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Henrique Romanine

Jornalista, colecionador de vinil e apaixonado por animais, cinema, música e literatura. Inclusive, sem esses quatro, a vida seria um fardo.

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