“Boas Novas” é um disco de autor. Poderia não ser, uma vez que a voz de Zeca Veloso, doce e afinada, passaria facilmente pelo portão largo das releituras. Mas ele escolheu entrar pelo portão estreito da autoralidade.
Das dez canções gravadas em “Boas Novas”, sete têm letras e músicas de Zeca (“Salvador”, “Talvez Menor”, “Desenho de Animação”, “Máquina do Rio”, “Tua Voz”, “A Carta” e “O Sopro do Fole”) e as três outras foram escritas em parceria: “Boas Novas”, com Tom Veloso; “Carolina”, com Tadeu Bijos e Sylvio Fraga; e “O Sal Desse Chão”, com Xande de Pilares.
Em todas encontramos traços personalíssimos, procedimentos poéticos e musicais maturados por um compositor que não teve pressa para lançar seu primeiro álbum, no qual trabalhou ao longo de pelo menos três anos.
“Boa-nova” é a tradução da palavra grega euangélion. Mas “Boas Novas” é título matreiro: sem deixar de remeter aos Evangelhos, pode perfeitamente indicar uma coleção de boas canções novas – todas posteriores a “Todo Homem” (2017), cujo sucesso rendeu a Zeca uma legião de fãs que passaram a ansiar por seus próximos atos criativos.
“Salvador”, que abre o álbum, acompanha a jornada de uma espécie de guerreiro espiritual que, sabendo-se constantemente passível de ser derrotado nas batalhas, segue íntegro no meio das vicissitudes. É forte que o compositor não cante sozinho esta canção, dividindo-a com Caetano, o pai, e com Moreno e Tom, os irmãos.
Aliás, um dos trunfos de Zeca é saber conduzir diálogos amplos. Basta lermos os créditos da produção de ‘Salvador’: ele os divide com Luciano, Marlon, Kassin, Antonio Ferraz, Pepê Monnerat, Júlio Raposo, Pepê Santos e Uiliam Pimenta. Some-se a todos esses nomes o de Lucca Noacco e temos a lista de produtores de ‘Máquina do Rio’, originalmente composta como samba e tratada como pop-funk oitentista, no estilo dos arranjos de Lincoln Olivetti (o que se deve à concepção trazida por Luciano). Na letra, um sujeito delimita certa distância em relação aos estímulos desorientadores oferecidos pela vida carioca, que bem conhece. Tematizando a relação complexa entre arrependimento e perdão, chega-se a uma transfiguração da cidade, a partir de um jogo com os nomes de seus bairros, comunidades e ruas. Noutras palavras, é firmado um pacto com o “sopro que acende a máquina do Rio”.
Salvador e Rio de Janeiro: sim, este é um disco brasileiro. Nele o Brasil também é atravessado pela dimensão reflexiva. Em ‘Desenho de Animação’ e ‘Carolina’ podemos ver a movimentação das ideias de Zeca a respeito de nossa identidade cultural. Na primeira, ele retoma, com ironia, uma questão inquietante: levamos uma vida cultural imitada, postiça? Remetendo ao pensamento crítico de Roberto Schwarz, o compositor se mostra lúcido quando identifica em sua própria formação – e na de toda sua geração – as marcas deixadas pelo imperialismo estadunidense diluído no entretenimento cotidiano. Além disso, Zeca relativiza as pretensões de autenticidade dos que, contra a massificação, brandem as armas da alta cultura. Assim, traz à baila uma pergunta desconcertante sobre o maior escritor brasileiro: influenciado profundamente pela literatura de língua inglesa, será que Machado de Assis já não seria um copiador? (“Procuro em solo tropical/Bentinho, Brás e Rubião/(…)/Mas eram eles já o sinal?/Riqueza de reprodução”). A letra segue provocadora até o final elíptico, revelador da continuidade de nossa crise de identidade ao longo dos séculos (“Escrevo o meu refrão enfim/A dúvida dentro de mim/Tupi-guarani, mandarim?”). ‘Desenho de Animação’ tem inflexões de balada pop, e a conjugação disso com sua verve crítica é caso raro.
Tanto ‘Desenho de Animação’ (produzida por Kassin) quanto ‘Carolina’ foram belamente orquestradas por Noacco. Mas ‘Carolina’ glosa o mesmo mote em outro estilo. Onde aquela era ensaística, esta é cênica. A balada bilíngue, cuja letra foi lapidada por Bijos e Fraga, tem melodia que Zeca ouviu em um sonho que teve com John Lennon. Nela, encena-se o diálogo entre a personagem-título, que canta em inglês e não quer seguir vivendo no Brasil, e seu amado que, inicialmente em português, tenta convencê-la a ficar. A divisão em três estrofes é hábil. Na primeira, Carolina canta sua incompatibilidade com o país e mitifica o norte do mundo; na segunda, o amado exalta a vitalidade do sul do mundo, contrapondo-a ao império do norte, coração do capitalismo; na terceira, Carolina leva seu interlocutor a confessar que também ele traz na alma as marcas da dominação cultural. Dá-se aí o turning point: ele passa a cantar em inglês e, ao invés de insistir no binômio Norte/Sul, começa a contar um sonho no qual alguém lhe revelou que um tempo de grande mudança está próximo. Zeca sustenta o desenlace enigmático, porque, como foi dito acima, em Boas Novas o Brasil é atravessado por uma dimensão profética.
