No dia 30 de junho de 1975, o público brasileiro recebeu Fruto Proibido, quarto disco solo de Rita Lee e o segundo gravado com a banda Tutti-Frutti. Lançado em plena vigência da Ditadura Militar, o álbum surgiu nas prateleiras das lojas como muito mais do que uma coleção de músicas: foi resultado de um processo criativo ousado, que desafiava limites estéticos e políticos.
A obra não apenas redefiniu os caminhos do rock nacional, como também se consolidou como um grito de resistência em um cenário de censura e repressão. Passados 50 anos, o disco permanece essencial para compreender não só a evolução da música brasileira, mas também a história social e cultural do país.
Quando deixou (ou melhor, foi expulsa) d’Os Mutantes, em 1972, Rita atravessou uma fase delicada. O grupo que ajudara a fundar com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias era um dos mais inventivos da Tropicália, e sua saída soava como um ponto final doloroso. Sem banda, sem palco e sem perspectivas imediatas, Rita voltou para a casa dos pais, em São Paulo. A artista já havia rompido barreiras criativas e culturais, mas agora precisava recomeçar, de um modo como nunca havia vivenciado antes.

Em sua autobiografia, lançada décadas depois, ela relembra que cogitou inventar uma desculpa para justificar o retorno ao lar, mas acabou confessando com franqueza: tinha sido dispensada. O momento era de vulnerabilidade, mas também de coragem. Foi dessa reconstrução íntima, muitas vezes feita no porão da casa da família, que nasceram algumas das letras mais emblemáticas de sua carreira. Entre elas, “Ovelha Negra”, verdadeiro retrato de quem se recusava a caber em molduras convencionais.
Reerguida, Rita decidiu montar uma nova banda. Ao lado da guitarrista Lúcia Turnbull, primeira parceira de peso após Os Mutantes, e de músicos como Luís Sérgio Carlini (guitarra solo), Lee Marcucci (baixo) e Franklin Paolillo (bateria), ela encontrou o suporte perfeito para dar corpo a suas composições. A Tutti-Frutti trazia energia e todo o frescor sonoro que Rita não encontrava mais nos Mutantes, em uma cozinha musical que dialogava com o que de melhor se fazia no rock setentista, mas sem abrir mão da brasilidade.
O resultado foi explosivo. Juntos, criaram um som cru e vibrante, mesclando blues, hard rock, psicodelia e pitadas tropicais. Rita assumiu a liderança criativa e, mais do que vocalista, tornou-se condutora de uma linguagem própria. Não era apenas uma mulher no meio de homens: era a dona da banda, a mente por trás da obra. Naqueles longínquos anos 70, e em plena época de Ditadura Militar, era um feito praticamente inédito dentro da música brasileira.
A força das canções

Logo na faixa de abertura, “Dançar pra não dançar”, fica claro que Rita não pretendia repetir fórmulas. A música é um convite à libertação do corpo, uma provocação direta ao conservadorismo da época. Os riffs de Carlini soam cortantes, enquanto a voz de Rita exala ironia e sensualidade. Não era apenas uma canção: era um manifesto contra a repressão.
Em seguida, vem o primeiro grande hit, “Agora Só Falta Você”. Com groove irresistível e bateria marcante, tornou-se hino de independência feminina. A letra é direta: fala do prazer de ser quem se é, sem pedir permissão. Na época, o recado soava ainda mais ousado, vindo de uma mulher em meio a uma cena musical dominada por homens.
Outra pérola é “Esse Tal de Roque Enrow”, em que Rita brinca com a dualidade entre sátira e reverência ao rock. A faixa sintetiza bem o espírito do álbum: debochado, livre e consciente de seu papel como afirmação cultural brasileira. Não por acaso, contou com a coautoria de Paulo Coelho, então parceiro de composições também com Raul Seixas. Sua visão mística e bem-humorada se encaixou perfeitamente na irreverência de Rita.
E, claro, impossível não citar “Ovelha Negra”. Mais do que um sucesso, a canção virou símbolo de diversas gerações. Composta apenas por Rita, é uma espécie de autorretrato definitivo: a filha que não segue o esperado, que escolhe o próprio caminho e se orgulha disso. O solo de Carlini, criado em sonho, tornou-se um dos mais memoráveis da música brasileira (senão, o melhor).
Pérolas escondidas

Embora os hits tenham marcado época, Fruto Proibido guarda tesouros menos lembrados, mas igualmente poderosos. A faixa-título, por exemplo, é uma das mais ousadas do disco. Ao reinterpretar o mito bíblico do Éden, Rita transforma a ideia do “pecado original” em metáfora de desejo, prazer e autoconhecimento. Em plena ditadura, cantar “morder a maçã” era um ato de rebeldia.
Outra faixa surpreendente é “Pirataria”, parceria de Rita com o baixista Lee Marcucci. Misturando folk, psicodelia e rock, a música tem arranjo com flauta transversal que remete ao Jethro Tull, mas ganha contornos tropicais e libertários. A letra, cheia de duplo sentido, reflete sobre liberdade e transgressão, com o humor característico da cantora.
“Luz del Fuego”, por sua vez, presta homenagem à artista capixaba Dora Vivacqua, conhecida por desafiar padrões de comportamento e defender a liberdade sexual. A escolha da figura como inspiração reforça a conexão de Rita com ícones femininos que ousaram enfrentar a moralidade vigente.
Entre a música e a política

Ouvir Fruto Proibido apenas como um disco de rock é reduzir seu alcance. Cada faixa traz, em maior ou menor grau, um gesto político. Lançar um álbum liderado por uma mulher roqueira em 1975 já era, por si só, uma afronta ao status quo. Somava-se a isso o contexto da Ditadura Militar, em que letras provocadoras podiam facilmente ser censuradas. Rita driblava com ironia, sensualidade e humor, mas sem perder a contundência.
A capa do disco reforça essa postura. Em tons de rosa, Rita aparece de vestido, com o teclado nas mãos, desafiando a ideia de que rock era território masculino. Assumia sua feminilidade como força disruptiva, em vez de mascará-la para se adequar ao padrão agressivo e testosterônico predominante no gênero.
Apesar de alguma resistência inicial da crítica especializada, Fruto Proibido conquistou o público rapidamente. Em plena época de repressão, vendeu mais de 200 mil cópias, um número expressivo para um álbum de rock nacional. Nelson Motta, em sua coluna no jornal O Globo, destacou que o disco representava não apenas o primeiro grande sucesso comercial de Rita Lee, mas também o primeiro êxito popular de um artista de rock brasileiro dos anos 70.
Mais do que os números, o que se consolidou foi o impacto cultural. Rita abriu espaço para que outras mulheres pudessem trilhar caminhos no rock e na própria MPB. Nomes como Marina Lima, Paula Toller, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, Pitty e Tulipa Ruiz encontraram, em sua ousadia, um precedente fundamental. Como pioneira, ela mostrou que era possível ocupar o palco sem pedir licença, e sem precisar imitar padrões masculinos.
O legado

Cinquenta anos depois, Fruto Proibido não envelheceu. Continua a soar atual, não apenas pela qualidade dos arranjos ou pela interpretação de Rita, mas pelo espírito de liberdade que carrega. Em tempos de fórmulas prontas e músicas descartáveis, revisitar o disco é redescobrir o poder transformador da arte.
O álbum provou que o rock brasileiro não precisava ser cópia do estrangeiro. Podia ser híbrido, tropical, debochado, politizado e feminino. Mostrou que a irreverência podia caminhar ao lado da sofisticação artística. E, principalmente, que uma mulher podia estar à frente de tudo isso. Não como exceção, mas como protagonista.
Ao olhar para trás, é impossível dissociar Fruto Proibido do avanço das discussões feministas no Brasil. Lançado no mesmo ano da primeira Conferência Mundial da Mulher, o disco ecoava reivindicações por liberdade de expressão, autonomia e igualdade. Rita não discursava em palanques: fazia política através de canções que falavam de corpo, desejo, autoconhecimento e transgressão.
Sua trajetória inspirou gerações não só de artistas, mas de mulheres que se viram representadas naquela figura que, de vestido rosa, afirmava que ser feminina também era ser roqueira. A “ovelha negra” transformou-se em símbolo de quem não se conforma, de quem encontra força justamente na diferença.
Fruto Proibido não é apenas mais um álbum. É um marco cultural, um divisor de águas como poucas vezes se viu na música brasileira. Rita Lee, ao lado da Tutti-Frutti, ousou criar um disco que misturava rock internacional com a ginga brasileira, que unia feminilidade e rebeldia, ironia e poesia. Meio século depois, sua voz ainda ecoa, lembrando que o verdadeiro fruto proibido é a liberdade, irresistível, necessária e sempre atual.
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