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Vida e morte periférica

Le Parisien
(Imagem: Le Parisien/Reprodução)

Periferia é periferia em qualquer lugar.

Estes versos do rapper GOG nos ajudaram muito a pensar a pesquisa que fizemos com Adriana Facina, professora no Museu Nacional-UFRJ e professora convidada do IHEAL-Sorbonne Nouvelle, intitulada “Vagalumes: arte, cultura e esperança nas periferias urbanas do Rio e de Paris”. Não ia escrever sobre isso agora, aliás, nem vou falar muito hoje da pesquisa feita durante dois anos com mais de 30 coletivos culturais da zona norte e oeste do Rio e em Saint-Denis e Stains (cujos resultados encontram-se sintetizados em exposição até 30 de janeiro de 2026 na MSH Paris Nord). Mas dois acontecimentos recentes me obrigam a pensar num outro paralelo: a violência policial, institucional, contra as populações periféricas e faveladas, em qualquer lugar, na França, mas sobretudo no Rio.

Dia 28 de outubro de 2025 vai ser lembrado como um dia de caos e massacre na cidade maravilhosa. Quantos mortos? Até agora, já se contam mais de 100 vítimas de uma desastrosa operação policial na Penha e no Complexo do Alemão. Escolas e comércios fechados, clima de toque de recolher e confinamento pela cidade, medo e desespero da população. Dentre as vítimas, há alguns policiais e muitos civis.

Não tenho condições de, no calor dos fatos, analisar tudo isso, até mesmo porque quem está no Brasil saberia dizer melhor do que eu, mas não posso ficar calada, sem manifestar a minha indignação e revolta. A chacina, a maior da história do Rio de Janeiro, ocorre pouco depois de o congresso recusar a PEC da segurança proposta pelo presidente Lula. Na base da rejeição da PEC estão os parlamentares ligados ao governador do Estado do Rio, Cláudio Castro.  

Dia 27 de outubro de 2025, “comemoramos” (no sentido de “memorar”) 20 anos de falecimento dos adolescentes Zyed e Bouna, que, na cidade da periferia de Paris de Clichy-Sous-Bois, morreram eletrocutados num transformador elétrico depois de fugirem e se esconderem de uma “operação policial”.

A revolta foi imensa na França de 2005. As periferias se incendiaram durante dias, para manifestar a indignação com os fatos, que expunham a olho nu o descaso com os bairros populares e o racismo estruturante pós-colonial francês. Zyed Benna, 17 anos, vinha de uma família de árabes muçulmanos originários da Tunísia, e Bouna Traoré, 15 anos, era um menino negro e também muçulmano, cujos pais vinham da Mauritânia. O choque foi total.

Operação Contenção
(Foto: Valor Econômico/Reprodução)

Durante mais de 10 dias, o mundo via carros e prédios pegando fogo nas periferias de Paris. As pessoas, de longe, não acreditavam como a “cidade luz” podia esconder debaixo do tapete tanta miséria, contradições, e maus tratos das classes trabalhadoras “e perigosas” (para retomar um clássico do historiador Louis Chevalier, escrito nos anos 1950 sobre o imaginário das elites francesas: Classes trabalhadoras, classes perigosas).

O racismo não tardou a sair do armário, com Nicolas Sarkozy, na época ministro do interior – encarregado da segurança pública – se agitando em todas direções. Ele relança dispositivos de “manutenção da ordem” da época da guerra da independência da Argélia e não hesita a aparecer, como de costume, em todas as TVs.

Importante lembrar que poucos meses antes, em julho de 2005, diante das câmeras, o ministro Sarkozy em visita a La Courneuve, na periferia de Paris, expressa seu desejo de “passar um jato d’água” nos habitantes de um conjunto habitacional de 4000 residências. Dois dias antes das periferias se inflamarem de vez, ele diz para uma senhora na janela de uma moradia social no subúrbio de Argenteuil: “Vocês estão cansados dessa ralé, né? Vamos dar um jeito de acabar com eles!” 

Ironia do destino, por uma razão diferente, mas também grave, Sarkô (apelido nem sempre carinhoso dado a Sarkozy) foi preso na mesma semana que se completam duas décadas da morte de Zyed e Bouna e do evento conhecido como “revoltas das periferias”.

Sarkozy encontra-se na famosa prisão parisiense de La Santé, cumprindo pena de 5 anos por ter recebido financiamento ilícito para sua campanha presidencial de 2007 do ditador libanês Mouammar Kadhafi.Trata-se de um caso único na França, a prisão de um ex-presidente decretada pela justiça. Também nesse quesito, podemos pensar em mais um paralelo: Jair Bolsonaro também foi condenado e aguarda mandado de prisão (já está detido em casa), por crimes de tentativa de golpe de Estado, como sabemos.

Paris
(Foto: L’Express/Reprodução)

Assim como Sarkozy, os delitos de Jair não se restringem só ao que foi apresentado em seu julgamento. Bozo e Sarkô, são ambos dois cretinos de primeira linha, fruto do pior produto da violência de Estado que escancara a extrema direita e a direita extrema no campo político (mesmo se confesso que, na minha opinião, Bolsonaro consegue ser ainda pior do que Sarkozy). 

As periferias da França e do Brasil são semelhantes em muitas coisas, como nosso estudo comparativo revelou (lembrando da importância para todas ciências de poder comparar, inclusive e sobretudo, o incomparável). Ainda que as seguintes características sejam bem mais acentuadas no Brasil do que na França, como conclui também nosso colega especialista das quebradas de São Paulo Tiaraju d’Andrea, em ambos os casos, há precariedade, urbanismo caótico, concentração de pobreza, dificuldades de transporte, deficiência de serviços públicos.

No Brasil, é tudo mais grave do que na França talvez porque as periferias do Brasil sejam, de certa forma, uma dupla periferia:  são periferias de um país da periferia do capitalismo. Fato é que, em ambos os casos, as populações sofrem com o racismo e com a violência. Qual violência? 

O martinicano naturalizado argelino Frantz Fanon, psiquiatra, pensador e militante anticolonial, definia a violência como um fenômeno revelador de uma forma de dialética. A violência do colonizado é uma resposta à violência do colonizador. Em outras palavras, o colono só consegue se impor “a golpes de baioneta” e a violência dos processos de descolonização é, portanto, uma contra-violência.

Claro que Fanon, em Os Condenados da Terra, estava falando de um contexto particular, das revoluções descoloniais da África na segunda metade do século XX, mas sua teoria da contra-violência é interessante para pensarmos a situação atual. Para Fanon, quanto mais violenta for a colonização, mais violenta será a resposta dos povos colonizados. 

Chacina no Rio
(Foto: O Globo/Reprodução)

Para falar da França, nas periferias temos casos diversos de violência urbana (assaltos, tráfico de drogas, exploração de mulheres em situação de prostituição, etc). Temos também outra faceta da violência, mais institucional.

Como revelou um estudo recente publicado na revista Basta!, em 20 anos, desde a morte de Zyed e Bouna, 162 pessoas morreram em decorrência de uma tentativa de “controle policial”. Na maioria, homens racializados e periféricos. No Brasil, a gente já sabe como é a história. “Periferia é periferia…” Cantam também os Racionais MC’s. 

Nas periferias, há também juventude, pulsão de vida, solidariedades, criatividade, cultura popular, trabalho, esperança e resistência. Muito. Prometo num outro texto voltar a falar dos “Vagalumes”, estas luzinhas de perseverança e luta que brilham nas periferias universais, resistindo aos fascismos e ao neoliberalismo também através da cultura e da arte, como bem sabia Pier Paolo Pasolini, lamentando seu desaparecimento na Itália da hegemonia cultural capitalista. Hoje é dia de raiva, não quero misturar as coisas. Mas podemos pelo menos esperar justiça?

Sílvia Capanema

Historiadora e Professora Doutora na Sorbonne Paris Nord, parlamentar na França e ativista da RED-Br. Pesquisa movimentos sociais e memória popular.

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