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Soberania em julgamento: a decisão do STF, a resposta de um país e a urgência da união nacional

Ministro Flávio Dino. (Valter Campanato/Agência Brasil)

No dia 18 de agosto de 2025, o Ministro Flávio Dino proferiu decisão histórica nos autos da ADPF 1178, reforçando a cláusula pétrea da soberania nacional diante da escalada de ingerência jurídica e política estrangeira, especialmente por parte do atual governo dos Estados Unidos.

A decisão é densa em conteúdo, firme em tom e pedagógica na forma como reafirma que não há jurisdição estrangeira legítima sobre o Estado brasileiro sem expressa aprovação de seus órgãos soberanos. E que, no Brasil, quem decide os destinos da República — inclusive suas tragédias, disputas e reparações — é o próprio Brasil.

Sua ementa jurisprudencial, de precedente vinculante com a força de jurisdição constitucional, diz muito: “Direito Constitucional. Soberania Nacional. Inexistência de subordinação do Brasil a decisões judiciais, leis, decretos, ordens executivas e similares, emanadas de Estado estrangeiro.

Não existe, como regra, eficácia de tais atos no território brasileiro, sem a devida incorporação e concordância dos órgãos de soberania regrados pela Constituição e pelas leis nacionais. Vedação a que pessoas jurídicas e naturais atuem no território do Brasil em desacordo com o artigo 17 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). Decisão para o caso concreto, com fundamentos que se estendem a todos os casos similares. Segurança jurídica. ´Ratio decidendi´ com efeito vinculante e erga omnes.”

O problema prático e concreto que ensejou a propositura da ADPF 1178 decorre da conduta de diversos municípios brasileiros que, de forma isolada e sem respaldo dos órgãos centrais da soberania nacional, passaram a ajuizar ações judiciais diretamente em tribunais estrangeiros — notadamente na Inglaterra — visando à reparação de danos decorrentes de desastres socioambientais ocorridos no Brasil (tragédia de Mariana, sobretudo).

Essa atuação extrapolou as competências constitucionais dos entes municipais, violou o pacto federativo, submeteu indevidamente o Estado brasileiro à jurisdição estrangeira e comprometeu a integridade da soberania nacional, levando o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) a provocar o Supremo Tribunal Federal para que afirmasse, com força vinculante, a inconstitucionalidade dessa atividade federativa (in)jurídica e impedisse a celebração de contratos de risco abusivos com escritórios de advocacia estrangeiros à revelia do ordenamento jurídico pátrio.

Dino traça um limite claro: não se tolerará, em nome de interesses econômicos, que Municípios brasileiros — entes autônomos, mas jamais soberanos — busquem, por conta própria, submeter o País à autoridade de tribunais estrangeiros, comprometendo o pacto federativo e esvaziando a legitimidade das instituições nacionais. A lição extraída é inequívoca: submeter-se ao império jurídico de outro Estado é abrir mão da própria soberania.

Um valoroso fundamento jurídico da decisão — e é aí que reside parte de sua solidez — está ancorado no art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), que dispõe com clareza solar: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”

Importante destacar que, diante de dúvidas suscitadas sobre o alcance da decisão de 18 de agosto, o Ministro Flávio Dino emitiu, no dia 19.08.25, um despacho aclaratório reafirmando que o impedimento à eficácia de decisões de “tribunais estrangeiros” no Brasil não se estende aos tribunais internacionais de competência reconhecida por tratados incorporados ao ordenamento jurídico nacional.

Dino foi taxativo ao distinguir que “tribunais estrangeiros” são apenas aqueles pertencentes a sistemas jurídicos de outros Estados soberanos, enquanto tribunais internacionais — como a Corte Interamericana de Direitos Humanos — possuem competência supranacional legítima e vinculante, reconhecida pelo próprio Estado brasileiro.

Com isso, o despacho preserva a coerência constitucional e reafirma o compromisso do Brasil com o multilateralismo, a proteção de direitos humanos e o respeito à jurisdição internacional pactuada, sem abrir mão, contudo, da defesa firme da soberania nacional contra ingerências unilaterais de Estados estrangeiros

A decisão de Dino, portanto, não inventa uma nova doutrina: ela reafirma um comando normativo vigoroso e quase octogenário, que sempre protegeu nossa autonomia jurídica frente a ordens e arbitrariedades vindas de fora. A novidade não está no que se diz, mas na urgência com que se reafirma.

Como expus em minha aula magna de 15 de agosto, na Universidade Federal de Santa Catarina, o atual governo dos Estados Unidos tem cometido violações flagrantes à soberania interna e externa do Brasil, inclusive tentando interferir diretamente no funcionamento do Supremo Tribunal Federal, por meio de sanções unilaterais e de instrumentalização equivocada da Lei Magnitsky. O objetivo? Constranger juízes brasileiros e influenciar o resultado de processo penal legítimo — o da Ação Penal 2668 — movido contra um ex-presidente hoje inelegível, Jair Bolsonaro, aliado político do atual presidente norte-americano.

A tentativa de dobrar nossa independência judicial por pressão diplomática, revogação de vistos e sobretaxas unilaterais é um ato grave de beligerância jurídica e institucional. É também, como bem ensinou Hans Kelsen, um “delito de índole internacional”.

A soberania, não é um conceito decorativo. É a espinha dorsal do Estado democrático de direito. Ela tem duas faces: a externa — que nos iguala aos demais Estados soberanos — e a interna — que garante que apenas nossas instituições, por meio das regras constitucionais, decidam por nós.

É por isso que a decisão de Dino não é apenas jurídica: é política no mais nobre sentido republicano. Ela serve de alerta aos que, por conveniência ideológica ou ressentimento político, estão dispostos a entregar os destinos nacionais a países estrangeiros, acreditando que a punição de seus adversários justifica a renúncia ao próprio país. Vale lermos um trecho crítico significativo de suas motivações judiciais:

…o suporte empírico dessa controvérsia se alterou significativamente, sobretudo com o fortalecimento de ondas de imposição de força de algumas Nações sobre outras. Com isso, na prática, têm sido agredidos postulados essenciais do Direito Internacional. Instituições do multilateralismo são absolutamente ignoradas. Tratados internacionais são abertamente desrespeitados (…).  Nesse contexto, o Brasil tem sido alvo de diversas sanções e ameaças, que visam impor pensamentos a serem apenas ´ratificados´ pelos órgãos que exercem a soberania nacional

Diante disso, não há esquerda, centro ou direita. Há Brasil.

Salientamos que em reação à decisão oportuna e ciosa do Ministro Flávio Dino, o senador Flávio Bolsonaro, reincidindo na retórica autoritária que marca sua trajetória política e de sua família, lançou críticas infundadas e ofensivas, afirmando que a decisão representaria um “AI-5 do Supremo Tribunal Federal” e comparando o Brasil à Argentina na Guerra das Malvinas, insinuando que, ao enfrentar uma potência militar como os Estados Unidos, o Brasil estaria fadado à derrota, como Buenos Aires frente à Inglaterra.

A evocação de um dos momentos mais sombrios da ditadura brasileira — o Ato Institucional nº 5 — para atacar uma decisão constitucional, fundamentada na proteção da soberania nacional e da ordem jurídica brasileira, revela não apenas irresponsabilidade, mas uma tentativa explícita de deslegitimar mais uma vez o Supremo e, com ele, o próprio Estado de Direito.

Ao confundir a firmeza institucional com autoritarismo, e ao sugerir que o Brasil deve se curvar ao poder bélico alheio, o senador agride a memória nacional, insulta as instituições que resistiram aos golpes do passado e ameaça, mais uma vez, a integridade da República com um discurso de capitulação travestido de pragmatismo egoístico em prol de seu clã familiar.

A esse debate, somou-se com lucidez o cientista político Christian Edward Cyril Lynch, que, em comentário publicado em seu perfil pessoal no facebook, na tarde de 19.08.25, observou que a decisão do Ministro Dino nada tem de extraordinária do ponto de vista jurídico — é, segundo ele, “beabá de primeiro período de faculdade de direito”.

O Brasil é um Estado soberano, com ordenamento jurídico próprio e autônomo, e a aplicação de sentenças estrangeiras está submetida a critérios legais claros, inscritos desde sempre na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O fato de algo tão elementar ter se tornado polêmico e tratado como escândalo revela, segundo Lynch, o grau de degradação do debate público provocado pela extrema direita, que procura transformar o poder imperial dos Estados Unidos em uma espécie de “direito natural universal” acima dos ordenamentos jurídicos das demais nações.

Para Lynch, Trump e seus aliados, ao instrumentalizarem os mecanismos de integração internacional antes voltados à cooperação global, agora os transformam em ferramentas de coerção a serviço da agenda autoritária de uma “Internacional Reacionária” sediada em Washington — cujo objetivo é empobrecer a periferia global e reimperializar as relações internacionais. O alerta é claro: não estamos diante apenas de um debate jurídico, mas de uma disputa geopolítica sobre o futuro da soberania e da democracia no mundo.

Steven Levitsky, autor de Como as Democracias Morrem, no programa Roda Viva de 18.08.25 e em seminário no senado federal brasileiro semana que passou, foi direto ao comparar os atuais contextos brasileiro e norte-americano: o Brasil, diz ele, está demonstrando maior capacidade de defesa contra autoritarismos e rupturas institucionais do que os Estados Unidos. A razão? Nossa Constituição de 1988. Nosso sistema de justiça. Nossa experiência com a dor das ditaduras.

Sim, o Brasil aprendeu. E agora precisa ensinar — com firmeza, serenidade e sobriedade institucional — que não aceitará a transformação da sua soberania em mercadoria de conveniência geopolítica.

“Estamos sob ataque” (Lenio Streck). E, sob ataque, um país deve se unir. Repito: um país deve se unir.

Não se trata de apoiar este ou aquele governo. Trata-se de defender o Brasil.

Quando os EUA se lançam contra os pilares de nossa democracia para salvar um aliado político, não agem como nação amiga, mas como potência predatória. E quando brasileiros se alinham a isso, não fazem oposição: cometem traição.

E é preciso lembrar que, mesmo durante o regime militar, havia forte senso de proteção da soberania nacional. O que vemos agora é mais grave: há quem aceite — ou até deseje, como a família Bolsonaro — ver o Brasil ajoelhado para que se confirme a fantasia de que vivemos uma ditadura judicial. É covarde, é antinacional, é antipatriótico.

A decisão do Ministro Dino deve ser defendida e aplicada. É a reafirmação de que o Brasil tem juízes. Tem leis. Tem soberania.

Não aceitaremos imposições externas. Não aceitaremos que tribunais de Londres decidam o destino de nosso povo, nem atos presidenciais de Washington D.C. E não aceitaremos que brasileiros vendam sua pátria em troca de vinganças políticas ou benesses econômicas ou impunidades familiares.

Neste momento crítico, ou o Brasil se reconhece como Nação soberana e democrática, ou continuará a ser um território em disputa por interesses de fora e ressentimentos de dentro.

Chega. O tempo é de firmeza. O tempo é de unidade. O tempo é de coragem constitucional.

Desterro, “Ondina de Cruz e Souza”, 20.08.25, 09h00m.

Ruy Espíndola

Advogado publicista, sócio da Espíndola & Valgas, Advogados Associados – Professor de Direito Constitucional – Mestre em Direito UFSC – Membro da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Acácio Bernardes, da ABRADEP, do IASC, do IDASC, da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Colunista do Brasil Fora da Caverna, coluna “Habeas Corpus para a Democracia”.

Ruy Espíndola

Jurista e professor, Ruy Espíndola é advogado, autor de inúmeros livros e membro da OAB Nacional, ABRADEP e da Academia Jurídica de SC.

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