Skip to content Skip to footer

Sensenso

(Foto: Internet/Reprodução)

Construiu-se na Europa um senso comum, compartilhado inclusive por vários setores da esquerda democrática, de que a Rússia estaria prestes a invadir o ocidente e que a guerra seria quase inevitável.

O argumento em síntese seria que, violando o direito internacional, a Rússia invadiu a Ucrânia e se Putin não for forçado a recuar, devolvendo os territórios ilegalmente ocupados, certamente invadirá outros países europeus. Muitos europeus, com a estranha exceção da extrema direita, com pequenas variações, acredita nesta verdade construída pelos meios de comunicação de massa para a alegria e júbilo da indústria armamentista.

De nada adianta argumentar contra esse consenso europeu ocidental. Eu bem que tentei. Conversando com amigos espanhóis objetei que a Rússia só ocupou territórios ucranianos porque, mesmo alertada, a Europa insistiu em querer montar lá uma base da OTAN, hostil à Rússia. Não demorou nada para me acusarem de estar defendendo Putin, um tirano de extrema direita. Devolvi: o Zelenski também é de extrema direita e cancelou as eleições que poderiam confirmar ou não sua recondução ao governo ucraniano. Não me deram ouvidos. Ditador é o Putin que invade e bombardeia o país dos outros.

A uma amiga francesa também de esquerda que repetiu esse mesmo argumento perguntei se, por esse critério, os EUA poderiam ser considerados uma ditadura por invadir e bombardear os países dos outros. E fui além, lembrando minha interlocutora que a França bombardeou a Líbia e a Síria e vive se metendo na política interna de vários países europeus, perguntei-lhe se a França também é uma ditadura por violar, tanto quanto a Rússia e os EUA, o direito internacional. Não obtive resposta adequada. Parece que eu estava conversando com um muro.

Falando em muro, um amigo europeu de origem judaica que mora no Brasil há muitos anos, que também considera ser “inaceitável” a ocupação de territórios ucranianos pela Rússia, foi perguntado se o mesmo raciocínio valeria para a política de extermínio e para a ocupação ilegal dos territórios palestinos por Israel. A ladainha foi a de sempre: não há genocídio e Israel estaria apenas se defendendo do covarde ataque do Hamas em outubro do ano passado. A interdição ao diálogo honesto também aqui se revela. Assim como a Rússia, do nada, invadiu a Ucrânia, o Hamas, injustificadamente, atacou civis israelenses. O que houve antes da invasão russa, ou do covarde ataque do Hamas contra jovens civis em uma festa, não teria importância. As décadas de violência contra os palestinos não teriam relevância. Há um bloqueio cognitivo impondo uma memorização seletiva sobre o contexto dos conflitos, em Israel e na Ucrânia. Putin tem que ser obrigado a devolver os territórios ilegalmente ocupados, mas Israel não precisa. Seletividade burra sem compromisso com a razoabilidade.

Companheiros brasileiros radicados na Alemanha e amigos portugueses militantes, do mesmo modo, apesar de serem de esquerda, compartilham este consenso convencidos de que a Rússia estaria prestes a invadir a Europa Ocidental, justificando o aumento do orçamento militar. Mesmo diante da evidência histórica de que a Rússia, desde mais de um século, nunca hostilizou militarmente o Ocidente, meus amigos consideram iminente a possibilidade de um conflito generalizado na Europa, ”se Putin não for barrado”. O investimento bélico seria, pois, necessário e urgente.

Setores de direita desejarem a guerra não seria de se estranhar. É da natureza deles. O minúsculo Macron determinou que os hospitais franceses estejam preocupados para atender feridos de guerra já a partir de março do próximo ano. Esse gnomo diplomático, que pretende liderar uma Europa humilhada e rastejante perante o autocrata estadunidense, quer ampliar os gastos com armamentos bélicos ao passo em que quer cortar gastos públicos com saúde e educação, em genuflexão às políticas austericidas da União Europeia, que come com farinha o tarifaço de Trump. Ditador é só o Putin. Os principais líderes europeus parecem desejar que a iminência da guerra esteja na agenda política do subcontinente.

Entretanto, causa certo desconforto constatar que em vários países muitos setores da esquerda europeia embarcaram nesse consenso irracional. O que teria a Europa para despertar a cobiça do autocrata e das oligarquias russas? A Europa não tem riquezas naturais. Suas empresas, salvo exceções, são obsoletas, sua população envelhecida demanda crescentes gastos sociais. A conflitividade social em quase todos os países europeus não para de crescer, seja por conta do aumento da imigração de refugiados econômicos decorrentes do colonialismo e das guerras fomentadas pelo Ocidente, seja por força das contradições inerentes a um capitalismo globalizado e seletivo onde não cabemos todos. Racionalmente nada justificaria um eventual interesse da Rússia em invadir a Europa. Mas quem se importa com a racionalidade? O consenso está estabelecido.

Mesmo que Trump e Putin se entendam e decidam por um cessar-fogo permanente, nos moldes daquele que dividiu a Coreia, sem formalizar um acordo de paz, aparentemente a Europa insistiria na continuidade da guerra. A Europa parece querer a guerra ou, pelo menos, parece precisar dessa possibilidade para mobilizar forças políticas internas. Insiste em trazer a guerra para dentro de seu território. E com o surpreendente apoio de parcelas de uma esquerda temerosa de uma invasão russa, em um consenso que parece absurdo para quem não é europeu.

Um consenso burro, quase unânime, sem senso de realidade. Verdadeiro sensenso, se me permitem o eufemismo e a criatividade para inventar palavras inexistentes que deveriam existir.

Xixo, 31 de agosto de 2025

Mais Matérias

05 set 2025
Deputados e senadores acabam por corromper o que há de mais sagrado em um país que sonha com uma vida melhor e quer ter futuro: a democracia
05 set 2025
Populismo de derecha: discurso, símbolos y redes sociales
05 set 2025
Sóstenes Cavalcante deveria ser cassado por ausência de decoro parlamentar
04 set 2025
Que a justiça seja justa, mas a pena que receber ainda será pequena tendo em vista seu “breve histórico”
03 set 2025
Em 2025, o Brasil não apenas julga seus algozes internos; oferece ao mundo uma lição histórica

Vamos construir a notícia juntos