por Jean Wyllys
O que aconteceu no Rio de Janeiro — a morte de mais de cento e vinte pessoas em uma operação policial — não é um desvio, nem um ponto fora da curva. É continuidade. Em 1992, no Carandiru, essa mesma lógica produziu um dos maiores massacres da história do Brasil. Ontem como hoje, a direita chamou o massacre de “faxina” — como se a eliminação de pessoas pobres e negras fosse um ato de limpeza moral, higienização urbana ou restauração da ordem. Assim, o país se revela não como república, mas como República da “faxina”.
Em meu mestrado em Letras e Linguística na UFBA, estudei os relatos dos sobreviventes do Carandiru ao lado do testemunho de Drauzio Varella e das narrativas da Folha de S.Paulo e do Notícias Populares. Ali compreendi que as chacinas não terminam quando cessam os tiros: continuam nas versões, nas manchetes, nos silêncios, e naquilo que se escolhe recordar ou descartar.
Michel Foucault descreveu esse processo como produção da verdade: a verdade não é o acontecimento, mas o regime de discurso que se impõe sobre ele. A verdade depende de quem é autorizado a falar e de quem é condenado ao silêncio. Os sobreviventes diziam que houve “queima de arquivo”. Diziam que o pânico moral da AIDS inflamou o gesto de matar. Mas suas vozes foram tratadas como ruído — como aquilo que o país não quer saber sobre si mesmo.
Outro filósofo francês, Jacques Derrida, em seu Mal de Arquivo: Uma impressão freudiana, deu-me uma outra chave para refletir sobre a mesma violência. O arquivo, para Derrida, não é apenas o lugar onde a memória é guardada, mas onde se decide quem terá memória. Arquivar é sempre também excluir. Há vidas que entram na história; há vidas que a história prefere apagar.
E chegamos a 2025.
Mais de cento e vinte mortos no Rio de Janeiro.
E o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) chamou a chacina de “faxina”.
A mesma palavra que Afanasio Jazadji, deputado e apresentador policialesco, usou para o Carandiru.
Nada mudou na lógica.
Apenas aprofundou-se na necropolítica, que é como Achile Mbembe prefere chamar o que Foucault chamou de “biopolítica”: a decisão do Estado sobre quem vive e quem deve morrer, o que inclui proibir o aborto a mulheres e permitir que policiais executem delinquentes pobres sumariamente e sem qualquer punição.
Independentemente das acusações lançadas contra os mortos — se eram “suspeitos”, “envolvidos”, “traficantes” ou “elementos” — a execução sumária é ilegal no Brasil.
Não há, em teoria, pena de morte neste país.
A prova é simples:
imagine a polícia invadindo um condomínio de classe média alta e executando, a céu aberto, jovens brancos acusados de qualquer crime.
O país pararia.
Haveria comoção, tribunais, editoriais, investigação, memória.
Mas, quando os mortos são negros, pobres, favelados, o Estado chama de “faxina”,
e parte da população repete essa linguagem — não porque seja naturalmente cruel, mas porque foi formada na pedagogia neoliberal da sujeição, em que o valor da vida é medido por produtividade, moralidade e utilidade.
Essa sujeição produz o que venho chamando de falsolatria: a adoração das narrativas mentirosas que confirmam ódios e medos, hoje amplificadas pelos algoritmos das plataformas digitais, que recompensam o discurso que desumaniza.
Não estamos falando de segurança pública.
Estamos falando da eliminação dos mesmos tipos de pessoas desde a colonização até os dias atuais — agora internalizada como senso comum.
Enquanto pudermos chamar um massacre de “faxina” sem que o país inteiro se levante,
continuaremos sendo uma sociedade que administra mortos
e chama isso de ordem.
A pergunta permanece, simples e devastadora:
Quem é reconhecido como cidadão neste país — e quem é varrido?
Jean Wyllys é escritor e jornalista. Doutorando em Direito e Ciência Política pela Universidade de Barcelona. Mestre em Letras e Linguística pela UFBA. Autor de Falsolatria (Nós & Edições Sesc SP, 2024) e O anonimato dos afetos escondidos (Tusquets, 2025). Foi deputado federal pelo PSOL.
