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Reflexão necessária

(Foto: Anderson Coelho/AFP)

Em tempos de importação de armas de alto calibre pelo Estado de SC, na semana que passou, recebi um grupo de familiares de jovens mortos em intervenções policiais em Florianópolis — mães, pais, irmãos, além de advogados e jornalistas. Era um coletivo que começava a se organizar para lutar por justiça. Em geral, todos se reuniam no salão de uma paróquia, no morro, e agora buscavam construir caminhos junto a autoridades e instituições.

Na hora marcada, chegaram um a um, aguardando na antessala, em silêncio. Todos presentes, doze pessoas no total, pedi que fossem trazidos à minha sala. Já sabia e tinha avisado que não haveria espaço suficiente para cadeiras, e duas pessoas tiveram que ficar em pé.

Comecei a reunião com boas-vindas. Falei que podiam ficar muito à vontade, que eu sabia que o assunto era sensível, de pesar, mas que, na medida do possível, tínhamos que manter o ambiente com muita fraternidade, e o sorriso era a mensagem de resistência que traríamos na face.

Em seguida, adentramos nas profundezas humanas. Minha participação, sem representar ninguém além de mim mesmo, foi apenas ouvir, procurando compreender a realidade e ter alguma noção das dificuldades enfrentadas pelos cidadãos das comunidades periféricas.

A conversa foi muito triste, marcada por momentos de choro dos familiares, que me emocionaram e fizeram meus olhos marejarem. Era muita dor em cada relato. Além da violência sofrida — filhos de quinze, dezesseis anos mortos dentro de casa, diante dos pais e irmãos —, aqueles familiares ainda enfrentavam dificuldades de obter os laudos periciais das mortes. Em ofensa à lei — Art. 5º, XXXIII, da CF e Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) —, as famílias não tinham acesso às investigações sobre a morte de seus entes. Além disso, segundo o grupo, todos sofriam perseguições e intimidações, tanto nos locais de trabalho quanto em seus próprios lares.

A cada frase, cada detalhe dos fatos, um universo de questões me tomava, especialmente sobre como pessoas tão sofridas e violadas ainda acreditavam na justiça. Sim, se elas tinham vindo ao meu gabinete, por mais que eu não fosse responsável pelos casos e minha participação, como dito, fosse apenas de ouvinte, era porque ainda acreditavam na justiça.

Ficamos quase duas horas dialogando. Ao final, tiramos uma foto juntos, apenas para guardar como lembrança, já que o grupo temia exposição.

Na saída, acompanhei-os até o elevador do andar do meu gabinete, para ali me despedir. Não costumo assim proceder, em geral despeço-me na porta de minha sala, mas a ocasião exigia: queria que se sentissem em casa, que percebessem, ao menos naquele momento, a presença da justiça — mesmo que meu papel fosse apenas o de um anfitrião atento.

Ainda reflito sobre tudo que ouvi. Ainda reflito sobre justiça. Ainda reflito, sabendo que apenas refletir não é suficiente.

João Marcos Buch

Desembargador do TJSC e membro da AJD, é escritor e referência em direitos humanos e execução penal no Brasil.

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