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Quando os freios e contrapesos precisam de defesa: o STF, o Senado e o risco do constitucionalismo abusivo

(Foto: Depositphotos/Reprodução)

A Constituição de 1988 nos entregou um projeto de civilização: uma democracia constitucional dotada de limites, controles e espaços de participação cívica. Mas projetos civilizatórios, quando postos sob tensão — e o Brasil viveu uma das maiores tensões de sua história recente entre 2019 e 2023 — exigem vigilância redobrada. Exigem olhos abertos, memória ativa e, sobretudo, coragem institucional.

Foi nesse espírito que li a decisão cautelar do Ministro Gilmar Mendes na ADPF 1.259/DF e 1.260/DF, enfrentando o antigo e imprestável regime jurídico do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal, ainda regido pela Lei 1.079 de 1950. 

Ali, a Corte — em voz monocrática, mas fundada em densidade histórica e teórica — acende um sinal de alerta contra a antiga e recorrente forma de ataque à independência judicial: a intimidação política travestida de procedimentos legais discricionários.

A decisão recupera uma literatura robusta.

Kim Lane Scheppele, ao tratar do legalismo autocrático, demonstra como líderes e parlamentos iliberais utilizam mecanismos formais para subverter o Estado de Direito.

David Landau, ao desenvolver a tese do constitutionalismo abusivo, mostra que as democracias morrem mais frequentemente pela via das “formas legais” do que pela violência aberta.

E Paolo Sosa-Villagarcía, José Incio e Moisés Arce descrevem uma nova ameaça: a autocratização legislativa, quando maiorias parlamentares tentam capturar instituições de controle.

O Ministro Gilmar Mendes soube trazer esses autores ao coração da decisão. E fez mais: lembrou episódios históricos brasileiros — do Estado Novo de Vargas até ao golpe de 1964 — em que o Executivo aparelhou o Supremo mediante aposentadorias compulsórias, redução de cadeiras e mecanismos de pressão.

Seu ponto central, contudo, é cristalino: o impeachment infundado de ministros do STF não é instrumento republicano, mas arma de corrosão democrática. 

É um ataque não ao juiz, mas ao próprio “poder de dizer o Direito” — pilar que sustenta a democracia constitucional.

No Brasil, nunca se exigiu tanto do Senado quanto agora.

A Casa senatorial precisa exercer suas funções dentro da moldura constitucional: sabatinas rigorosas, comissões que convocam sem espetacularizar, legislar onde há omissão, corrigir rumos sem humilhar Poderes.

A decisão de Gilmar Mendes reforça isso: quando o impeachment vira instrumento de pressão, quebra-se o último anteparo contra o arbítrio.

Na construção cautelar apresentada pelo Ministro Gilmar, há um aspecto que, a meu ver, merece reflexão mais longa — e talvez revisão pelo colegiado: a exclusividade do Procurador-Geral da República para apresentar denúncia por crime de responsabilidade contra ministros do STF, excluindo, mesmo, os próprios parlamentares, seja da câmara, seja do senado, além de todo e qualquer cidadão com os regulares direitos políticos.

A Constituição de 1988 assegura a todos o direito de petição. O direito de representar, de requerer fiscalização e responsabilização é intransferível, ao meu ver. E com o quórum elevado de recebimento, a garantia contra o arbítrio, me parece, está mais assegurada. E esse direito, o de petição, tem sido um instrumento popular de fiscalização republicana.

Reduzir essa legitimidade apenas ao PGR, embora possa fazer sentido sob a ótica de evitar abuso, talvez imponha uma limitação excessiva à cidadania. Sobretudo em tempos em que a própria Procuradoria Geral da República pode, ela também, submeter-se a humores políticos, como momentos em governos passados bem o demonstraram.

Aqui, minha impressão imediata — aberta ao contraditório e ao debate — é de que precisamos evitar que o remédio se torne mais nocivo do que a própria enfermidade democrática que se deseja combater. O direito de petição é cláusula de abertura republicana e instrumento de controle social do poder. Neste tema, penso, o PGR não é o dominus litis, nem deveria sê-lo na dimensão proposta pela decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes.

Mas esse ponto — apenas esse — merece, a meu ver, maior maturação coletiva no Plenário do STF. Nos demais fundamentos, a decisão é alvissareira e necessária. Se esse aspecto é debatível, todo o restante merece reconhecimento, pois a decisão do Ministro Gilmar, fundadamente, clarificou que:

1. Impede o afastamento automático do ministro com mera admissibilidade da denúncia — mecanismo incompatível com as garantias da magistratura e com a independência do Judiciário.

2. Rechaça a redução de vencimentos durante o processo de impeachment — prática anacrônica e violadora da irredutibilidade, essência da separação dos poderes, intra e entre poderes.

3. Exige quórum qualificado (2/3) não apenas para condenar, mas para iniciar o processo — o que impede maiorias voláteis de instrumentalizar o impeachment. 

4. Afirma que divergências hermenêuticas jamais constituem crime de responsabilidade — cláusula vital num sistema constitucional que é, por natureza, aberto e que demanda interpretações dos juízes sempre ao lidarem com o direito.

5. Relembra que cortes constitucionais não podem ser capturadas — nem por coalizões circunstanciais, nem por revoltas antissistema.

A fundamentação do Ministro Gilmar permite inferir que um Supremo intimidado representara um País cujas instituições e direitos fundamentais restarão desprotegidos. E um Senado que utiliza impeachment como arma política deixa de ser Senado — torna-se instrumento de revanche majoritária.

A crítica política fácil tenta imputar ao STF a culpa pela “judicialização da política”. Mas omite dois fatos evidentes: — quem judicializa é um sistema político que deixou de entregar respostas; — quem julga é uma Corte obrigada a fazê-lo, sob pena de denegação de justiça, que só atua provocada, jamais de ofício, salvante a hipótese estrita de inquéritos judiciais face omissão do Ministério Público ou da Polícia Federal.

A sociedade brasileira tem sido vítima de uma retórica que inverte conceitos — chamando democracia de ditadura, e chamando limites republicanos de abuso. É a “novilíngua” dos extremismos contemporâneos, para usar a expressão de George Orwell, em seu livro “1984”.

A decisão do Ministro Gilmar Mendes rompe esse círculo vicioso: expõe o risco, nomeia os mecanismos de corrosão e restaura a centralidade do equilíbrio constitucional.

No fim das contas, o que está em jogo não é um ministro, não é um partido, não é uma maioria ocasional no Congresso, nem a crispação das redes sociais.

O que está em jogo é a respiração mesma da nossa vida constitucional — esse lento e teimoso trabalho de manter acesa uma chama que pode ser pequena, mas não pode se apagar. 

Democracias não colapsam de um dia para o outro: elas desbotam, fenecem a ataques de cupins, não mais de gafanhotos… E só resistem quando há quem as defenda no instante exato em que parecem frágeis demais para se protegerem sozinhas.

A decisão do Ministro Gilmar Mendes — com seus méritos incontestes e um ponto ou outro que o tempo ainda lapidará — exerce, antes de tudo, uma função civilizatória: faz o Brasil reencontrar-se consigo, com sua Constituição e com a melhor parte de sua própria memória institucional.

Relembra que nenhuma República se sustenta se permitir que seus guardiães sejam transformados em alvo, e que nenhum Parlamento se engrandece quando abandona o papel de moderador para vestir a fantasia perigosa de justiceiro.

A democracia brasileira, tantas vezes ferida, tantas vezes subestimada, tem uma capacidade extraordinária de renascer após as eclosões e debacles das próprias tentações autoritárias. 

E é esse renascimento — modesto, prudente, mas luminoso — que a decisão mendesiana projeta.

Ela afirma, com serenidade e firmeza, que é possível corrigir rumos sem destruir pontes; que é possível proteger o Supremo sem enfraquecer o Senado.

A democracia não é uma obra acabada e sempre em movimento. 

E cada gesto institucional que a protege, cada palavra que a reafirma, cada decisão que a reconduz ao seu leito natural, aproxima-nos daquele País que ainda estamos aprendendo a ser: um país onde o Direito é abrigo, não arma; onde o dissenso é força, não ruptura.

Desterro, Ilha Capital de SC, 08 de dezembro de 2025.

*Ruy Samuel Espíndola é advogado publicista barriga-verde com atuação nas Cortes Superiores, 58 anos, Professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina, conferencista e autor de obras jurídicas, imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes e membro das Comissões de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB, da OAB-SC e da OAB-RJ.

Ruy Espíndola

Jurista e professor, Ruy Espíndola é advogado, autor de inúmeros livros e membro da OAB Nacional, ABRADEP e da Academia Jurídica de SC.

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