É absolutamente inconstitucional um projeto de anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2023, incluindo, evidentemente, os elaboradores, financiadores e beneficiários da trama golpista e, mais especialmente, o líder da organização criminosa, Jair Bolsonaro.
Em texto de impecável datismo publicado no Correio Braziliense, no último 16 de setembro, os juristas Lenio Streck, Pedro Serrano e Mauro Menezes explicaram, em poucas linhas, o porquê da inconstitucionalidade do Projeto de Lei. Nada tão diferente do que afirmei ao jornalista Leonardo Sakamoto, em entrevista ao UOL, no último domingo, 14.
O art. 1° da Constituição Federal estabelece textualmente que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. No art. 5°, dois incisos estipulam: XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; e XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Os réus do núcleo 1 da conspiração golpista foram condenados por: organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e ameaça grave; e deterioração de patrimônio tombado.
É verdade que a já ultrapassada Lei dos Crimes hediondos (Lei n.º 8.072/90) não incluiu dentre os crimes que elenca aqueles cometidos contra o Estado Democrático de Direito. Porém, expressa o parágrafo único de seu art. 1°: “consideram-se também hediondos, tentados ou consumados: V – o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado”.
É possível negar que uma organização criminosa destinada a irromper contra o Estado Democrático de Direito é uma organização criminosa destinada a cometer um crime equiparado a crime hediondo? Não. Portanto, tal crime é também inafiançável e insuscetível de graça ou anistia pela exegese do inciso XLIII, do art. 5°, da Constituição.
De outra sorte, em que se diferem a trama golpista da hipótese prevista no art. 5°, XLIV, da Constituição, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático? Nada. Em consequência, por esta via, é inafiançável e imprescritível, sendo possível afirmar, por simples operação hermenêutica, constituir-se em conduta de gravidade suficiente para não ser contemplada com graça ou anistia.
A questão é imperativa. Se o Congresso aprovar um desavergonhado perdão aos condenados do 8 de janeiro, em forma de anistia geral ou específica, restrita ou irrestrita, descriminalizando os bandidos que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, buscando surrupiar a democracia nacional, fatalmente o STF declarará a nova Lei inconstitucional.
Mesmo porque a Constituição, em seu art. 60, § 4º, protege um núcleo fundamental de direitos contra o qual sequer são admitidas emendas: (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (IV) os direitos e garantias individuais – crimes normalmente abolidos numa ditadura, que, por sua vez, resultam da erosão do Estado Democrático de Direito, desejo dos golpistas em sua trama conspiratória. Isto é, ainda que não fosse um Projeto de Lei, mas uma Emenda Constitucional, a tentativa de impunidade não encontra legitimação sistêmica ou confirmativa com a ordem constitucional.
O que venho sustentando há algum tempo é que esse suposto PL da Anistia é um visível e explícito PL da Impunidade. É assim que ele deve ser conhecido: PL da Impunidade! Impunidade para não responsabilizar criminosos condenados por delitos contra a pátria.
Criminosos que almejam ser perdoados agora para, no futuro, tentar voltar a delinquir com a certeza de que jamais pagarão pelos crimes. Esse duro aprendizado o Brasil já amargou experimentar inúmeras vezes. Pacificação social não se consegue com impunidade. Muito pelo contrário, se obtém com a consciência de que agir criminosamente acarreta consequências danosas para a sociedade e para si.
No combo, o PL da Impunidade proposto no parlamento é inconstitucional, imoral e antiético. A rigor, não poderia sequer ser proposto, quanto mais, aprovado na Câmara dos Deputados . Se fosse, não poderia passar no Senado. Se passasse, deveria ser vetado pelo Presidente da República. Se derrubado o veto, o povo deveria devolver, no voto, o preço da traição. Independentemente disso, que o STF permaneça vigilante e, se necessário, funcione como garantidor da democracia nacional. Anistia, ou melhor, impunidade, jamais!
Marcelo Uchôa
Doutor em Direito Constitucional com estudos de pós-doutorado em Direitos Humanos. @MarceloUchoa_