Como algumas leituras no STF podem perpetuar a exploração do trabalho por plataformas
Você, leitor, foi a um circo. Entre luzes, fogos e músicas, uma pessoa com nanismo se prepara para entrar em um canhão. A plateia, inclusive você, aplaude incessantemente. A pessoa entra no canhão e está prestes a ser lançado a uma altura realmente incrível, quando o espetáculo é interrompido por defensores dos direitos humanos que gritam que aquilo é errado, que ninguém deveria correr riscos para sobreviver. A plateia vaia, e a pessoa com nanismo, com naturalidade, responde: “Mas eu aceitei! É como eu ganho a vida!”. E a plateia, inclusive você, aplaude efusivamente.
Essa alegoria resume, com brutal precisão, o que acontece com o trabalho por aplicativos no Brasil. As plataformas dizem que entregadores e motoristas são autônomos, livres, que escolhem quando trabalhar, que podem recusar corridas e definir seu próprio destino. Mas quem fala por nós? Quem conhece nossas ruas, nossas jornadas exaustivas, nossas condições de risco? A maior parte dos que estão no julgamento que começou ontem, 1o de outubro de 2025, não tem nem ideia do que isso significa na prática. E, mesmo assim, dizem decidir por nós.
As empresas insistem em se apresentar como “tecnologia”, mas é necessário deixar claro: elas são, essencialmente, empresas de logística que usam tecnologia para maximizar lucro e reduzir obrigações. Quando um cliente pede um iFood, ele não compra um software; ele compra entrega, transporte, serviço humano.
A tecnologia é apenas o meio, não o produto final. E é justamente nesse ponto que se funda toda a exploração: transformam o trabalho humano em mercadoria abstrata, enquanto celebram a sofisticação de seus algoritmos como se fossem máquinas de autonomia plena.
O modelo de negócio que eles defendem não pode estar acima da lei. Se eu inventasse um negócio onde pessoas trabalhassem por R$1,00 a hora enquanto eu enriqueço, certamente seria considerado exploração e o Ministério Público do Trabalho interviria, atrapalhando o “sucesso” do empreendimento. Mas quando a mesma lógica é aplicada em escala por plataformas brasileiras, com bilhões de lucro, ninguém se incomoda. Lucro acima de direitos humanos, sucesso empresarial acima da dignidade: eis a equação que se tenta naturalizar.
E quanto à famosa autonomia? Ela é, na prática, um simulacro cuidadosamente construído. Na Rappi, se você recusar corridas, sua taxa de aceitação cai e, com ela, sua renda e sua visibilidade na plataforma, além de dívidas sobre produtos que – por motivos alheios ao entregador – não chegaram aos clientes da plataforma. Pode passar um dia inteiro sem tocar uma única entrega. No iFood, recusas geram bloqueios e “paradas técnicas”, e um cronômetro é ativado durante as demandas, forçando o entregador a correr e se expor à riscos.
Turnos quase obrigatórios, rankings, avaliações constantes, telemetria e demais algoritmos que determinam cada movimento – sabem até quando mudamos de faixa, aceleramos ou freamos. A alegação de que podemos trabalhar quando quisermos é ridícula: não escolhemos porque precisamos trabalhar para sobreviver, e muitas vezes sobreviver significa passar 12 ou 13 horas diárias na rua apenas para garantir algum rendimento líquido depois de custos de combustível, manutenção, alimentação.
Enquanto isso, o STF discute se deve ou não reconhecer vínculo empregatício. Mas talvez a própria Corte esteja se enganando sobre o foro adequado para a análise da relação de trabalho. Existe a Justiça do Trabalho, especializada, com estrutura e experiência para avaliar subordinação, hierarquia, risco e controle. No entanto, a discussão foi elevada ao plenário constitucional, transformando nossa vida em abstração jurídica, em espetáculo para plateia e mídia, afastando a realidade concreta de quem trabalha e quem sofre na rua.
O argumento do “meio-termo” também não resiste à crítica. Órgãos como a AGU e defensores da liberdade econômica sugerem reconhecer alguns direitos, mas não vínculo, como se fosse possível extrair algum benefício sem admitir responsabilidades.
É o melhor dos dois mundos: explorar a força de trabalho, negar autonomia e direitos, reduzir custos legais e ainda manter o lucro máximo. Mas nós não queremos ser subordinados. Queremos autonomia plena, liberdade para negociar contratos, precificação justa, recusa de demandas sem punições. Enquanto a subordinação algorítmica existe, porém, é justo e necessário acessar os direitos derivados dessa subordinação.
O custo humano é incalculável. Jovens mutilados, acidentes graves, mortes diárias — e o Estado, através do SUS, absorve a conta. Enquanto isso, empresas lucram bilhões, sabendo o preço de cada vida perdida, de cada corpo ferido. Legalizar este modelo seria transformar em norma a tragédia humana, e o STF corre o risco de referendar exatamente isso.
A manipulação da narrativa é outro ponto crítico. Pesquisas enviesadas tentam convencer a sociedade de que entregadores “não querem direitos”, ignorando manifestações, mobilizações e audiências públicas como a que participei em 6/12/2024. Mas a Corte não pode se limitar a aceitar dados distorcidos; deve considerar a realidade material da relação de trabalho. O espetáculo da plateia aplaudindo o anão é exatamente isso: um consenso construído em cima do risco e da vulnerabilidade de quem trabalha.
E, finalmente, não somos coitadinhos. Não pedimos esmola, não imploramos por proteção. Exigimos direitos humanos, dignidade e justiça real. Não queremos que nossa existência seja apenas uma estatística, um dado econômico ou um espetáculo abstrato. Queremos que a primazia da realidade — que é princípio jurídico, mas também moral — seja respeitada: não somos autônomos; somos subordinados, controlados por algoritmos que decidem nossas condições de vida e nosso sustento.
O STF está diante de uma escolha histórica: pode legalizar um modelo predatório, consolidando exploração e mortes, ou pode enxergar a realidade, garantir direitos e dignidade, e abrir espaço para que a autonomia real e o respeito aos trabalhadores se tornem regra. O circo continua, mas é hora de que a Corte decida se vai aplaudir ou intervir.
Nicolas Souza Santos
Entregador e Secretário da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos
