Um mundo de labirintos impessoais, assombrado pela burocracia, com a coisificação daquilo que era humano e a humanização de tecnologias e documentos. Soa familiar nestes tempos que correm?
O escritor tcheco Franz Kafka foi mestre em descrever situações absurdas, bizarras e opressoras. O seu romance “O Processo”, que descreve a luta de um homem comum contra uma autoridade irracional e a alienação moderna, virou metáfora de um sistema confuso e sem sentido. Hoje, virou também nome de plataforma popular de streaming de eventos, usada para coletar, processar e armazenar dados. Um sinal de que estamos em um caminho sem retorno? Escravos da impessoalidade, de um mercado voraz e indiferente às necessidades e sentimentos, que nos coloca em bretes desesperadores, sem conseguir sequer falar com alguém humano para um desabafo.
Quem de nós já não padeceu da sensação de impotência e desamparo, buscando encontrar uma saída, mesmo tentando entender os distintos sistemas que apresentam escolhas binárias e que não contemplam nossa aflição?
Minha comadre, outro dia, descreveu uma situação exemplar para esses aplicativos mais comuns de atendimento via IA. Ela precisou internar a mãe idosa em um grande hospital aqui de Porto Alegre. Assim que a mãe foi medicada com morfina para uma dor extrema na coluna, ela a deixou no quarto e foi em casa buscar roupas e produtos de higiene.
Quando chegou em casa, recebeu uma ligação confusa da mãe dizendo que estava na calçada do hospital tentando pegar um taxi. Em pânico, ligou para o hospital, tentando se certificar do paradeiro da mãe idosa. Mas foi atendida por uma central telefônica, com seis opções de resposta. A opção número 5 era para “informações sobre pacientes”. Ela apertou no botão e ouviu uma gravação dizendo que o hospital não fornecia informações sobre pacientes e que estas deveriam ser obtidas junto ao responsável, que no caso concreto era ela mesma! Achei até engraçado esse looping kafkiano no qual ela foi aprisionada, até eu mesma ser vítima de algo semelhante.
Postei um documento urgente, meu passaporte, para um consulado, no Sedex, serviço de entregas urgentes dos Correios. Paguei taxa extra para chegar mais rápido e ainda uma taxa de seguro por conta da importância do documento. O documento foi extraviado. O destino era o Rio de Janeiro, foi parar em Mato Grosso. Foi a última coisa que localizei. Passada uma semana, a informação de rastreamento permanecia paralisada em Várzea Grande. Abri chamado, no sistema, que me obrigou a preencher quilos de informações, para ao final me sentenciar com um prazo de cinco dias úteis para obter uma resposta.
Notem que o prazo de resposta é três vezes superior ao prazo de entrega do pacote. Tentei outros canais e todos me encaminhavam para o famigerado link. Consegui, depois de muita insistência e paciência budista, um diálogo por whats. A moça que me atendeu me recomendou, adivinhem, o link para registro de reclamação.
Nesse momento, os meus prazos de cinco dias para cada consulta já somavam meses. Expliquei que precisava ao menos de um prognóstico mais preciso, para ter alguma alternativa. Ela repetiu o link e encerrou a conversa perguntando se poderia me auxiliar em mais alguma coisa. Respondi que não havia me ajudado em nada. Ela disse que me deu informações. E repetiu o link!
Ainda sob o impacto da nova vida de formulários e lacunas online, me assombrei com a notícia de que a Meta (Facebook e Instagram) lançou a Vibes, um feed infinito de vídeos gerados por IA, onde nada é real. A princípio o tipo de conteúdo é uma sucessão de vídeos de animaizinhos fofos, peludos, humanizados. É um tipo de repositório de lixo digital sem realidade ou conteúdo relevante.
A Meta fez uma parceria com Midjourney e Black Forest Labs para remixar conteúdo e postar no Storie e Reels. Rapidamente o feed promete aprender as preferências do tipo de lixo digital que cada um tolera. Mas qual o sentido? Como disse um colega da Rede Nacional de Combate à Desinformação, é uma espécie de colonização digital do imaginário, que afasta da realidade e oferece entretenimento falso para gerar um efeito anestesiante.
Tratamos, neste novo existir antropomórfico, de possibilidades, necessidades e, sobretudo, de impossibilidades. Talvez seja um laço equivocado pensar que a Inteligência Artificial possa atuar como um agente do mundo real. Gosto da perspectiva apresentada pelo pesquisador do IBICT, Marco Schneider, no seu mais novo livro Fascismo Zumbi: Desinformação, mídias sociais, inteligência artificial e outras histórias de terror do nosso tempo. Ele recorre à economia política para compreender como a democrática promessa de uma ágora eletrônica se transformou numa realidade de fake News e disseminação de ódio, que desviam a atenção do público para temas relevantes.
Marco se vale da antiga questão colocada por Hegel, a da racionalidade do real, tendo em vista o contraste entre o recente avanço tecnológico, simbolizado pela Inteligência Artificial, e seus efeitos deletérios (intensificação e não redução do trabalho humano, desemprego etc.), como destaca Celso Frederico na apresentação do livro: “Marco Schneider teve o cuidado de distinguir a razão dialética, focada no autodesenvolvimento do gênero humano, da razão instrumental, que tudo subordina à lógica da acumulação de capital”.
Será que a razão irá triunfar? Disque 1 para a opção que nos diz que a vitória da razão depende da vontade e da ação dos homens razoáveis…. brincadeirinha. Leia o livro, é para isso que se destina.