As redes sociais brasileiras viveram um fenômeno nas últimas semanas. O que capturou mais cliques, reações e debates não foi a estupidez que assassina de fome e violência em Gaza, nem as ameaças tarifárias de Trump, muito menos a constatação de que três dos expoentes da extrema direita mundial têm registros perturbadores de pedofilia. O que ocupou a atenção e a discussão acalorada entre influenciadores e anônimos foi um surto culinário inédito: o morango do amor. Um doce de quermesse com inovação e jeitinho genuinamente brasileiro, que virou febre e gerou controvérsias e engajamento na mesma medida.A tal receita que substitui a maçã pelo morango é uma pista do estranho e complexo lócus em que hoje se dão as interações e transações de todo tipo. O ambiente digital alterou o tempo, a dinâmica, a linguagem, os promotores e as hierarquias da formação da opinião. E criou um problema para a mídia maestrean que antes organizava seus interesses corporativos e criterios de noticiabilidade-nessa ordem-com a tranquilidade de quem era proprietária das chaves da vitrine e da direção dos holofotes. A tecnologia e seus dispositivos criaram outra lógica, novos proprietários e diferentes modelos de negócios, que rapidamente abandonaram um caminho virtuoso democrático de elevação de vozes periféricas, mas, ao contrário, aumentaram concentração, opacidade e recompensa para grupos e conteúdos criminosos e antidemocráticos.Sempre houve a discussão, na seleção de notícias do jornalismo, sobre o interesse público e os interesses do público. Assim, é natural que temas de menor relevância para a coletividade percam a disputa de audiência para assuntos menos complexos, às vezes tolos e até bizarros. Nos fluxos das redes, no entanto, essa é uma tendência inequívoca, transportada inclusive para temas graves, da galhofa e do deboche em forma de memes ocupando a síntese e a interpretação dos fatos.Já a cobertura jornalística precisaria equilibrar-se melhor no que de fato é criterio de interesse e esclarecimento e no que é mera estratégia de engajamento. Aprecio brevemente dois exemplos de crise existencial do jornalismo de referência. Desde que um patético ditador mundial novo tipo anunciou taxas ao Brasil numa carta não oficial (que nos obrigou à checagem de fonte e tradução porque o texto era inacreditável), editoriais e comentaristas revezam argumentos e posicionamentos contraditórios, atentos e dependentes das reações nas redes e das pressões do mercado, e mesmo, raramente, da institucionalidade e do bom senso. Nesse percurso, começaram reconhecendo o absurdo e a intromissão indevida na soberania e no sistema judiciário brasileiro, para logo entrar em pânico com a correta decisão do Ministro Alexandre de Moraes de conter a estrategia discursiva e criminosa do ex-presidente miliciano, até chegar ao auge de implorar pela capitulação e rogar ao presidente Lula que ligue para um sujeito autoritário que ja ordenou nenhum tipo de conversa. O absurdo da situação do anúncio da taxa de 50% é mais ou menos o seguinte: você tem duas filhas, um bandido armado invade sua casa, põe o revólver na sua cabeça e anuncia que vai estuprar uma delas. E se você reclamar, dobra a aposta e estupra as duas! Pior, o cunhado folgado que mora na sua casa de favor apoia o bandido e empresta a chave da porta. Negociar como nessas condições ? Aliás a figura abjeta do estupro não é utilizada aqui por acaso. Vamos ao segundo exemplo. Faltou encontrar na cobertura midiática uma reportagem em maior profundidade para compreender a proximidade com a pedofilia de líderes da extrema direita, revelando que o pânico moral que semeiam se inspira nas próprias taras e pulsões. Jair Bolsonaro foi condenado a pagar indenização por ter dito claramente que “pintou um clima” com duas meninas adolescentes. Seu líder e protetor Donald Trump também enfrenta a divulgação de seu nome nos arquivos do processo de Jeffrey Epstein, que comandava uma rede de pedofilia e prostituição. E o representante argentino, Javier Milei também foi acusado, pelo ex-amigo e jornalista Santiago Cúneo, de possuir material pornográfico e pedófilo. Não caberia ao jornalismo investigar esse fenômeno da hipocrisia e dos inúmeros casos que associam líderes políticos e religiosos de extrema direita a crimes contra a família que eles dizem defender? O que assistimos é a naturalização da estratégia de subverter vocábulos e valores. Palavras que expressavam um sentido superior, como liberdade, são frequentemente carregados de conotações negativas e -deturpadas – servem para encobrir crimes. É isso que ocorre quando a imprensa endossa que a decisão do supremo de cessar as mentiras fabricadas em série do miliciano é excessiva. Quanto ao morango do amor, nestes tempos ásperos, um doce com esse apelo faz bem. Vou testar . Melhor que o fétido gosto de laranja podre que nos assombra.
O morango do amor e a laranja perversa

Sandra Bitencourt
Participante