A intenção era deixar de lado a África do Sul. Minha cabeça, que ainda está lá, dá um nó. A companhia da autobiografia de Nelson Mandela (são mais de 700 páginas), é também a responsável. Leio com medo de não ter fôlego. Toda noite, nem que sejam poucas páginas, entro na saga desse homem.
Parecia impossível: ele conseguiu acabar com o sistema de Apartheid, de separação, literalmente, que deixou escorrer uma mancha de sangue por todo o país. Li pouco mais de cem páginas e entendo a conjuntura social, econômica e cultural que o povo africano viveu e como os colonizadores agiram. Deprimente, sem dúvida. Triste, com certeza.
Mandela começou a escrever clandestinamente em 1974, durante a prisão na Ilha de Robben (que não tive coragem de visitar), e retomou o texto ao ser solto, em 1990. Rolihlahla, o nome que ganhou do pai – que em Xhosa significa (coloquialmente) “encrenqueiro” – talvez tenha sido um prenúncio “das muitas tempestades que tenho ao mesmo tempo causado e enfrentado”, escreveu. O pai, chefe em Mvezo, garantiu ao filho, mesmo após a própria morte, a oportunidade de estudar e sair da pequena aldeia onde viveu isolado, mudando seu destino.
Quero ver como eu puxo esse fio sem fim de assuntos. Saio e volto para África ao mesmo tempo. Mesmo que abandone Mandela (não sei se resistirei ao relato das prisões), a dupla Antônio Bispo dos Santos e Jeferson Tenório me ajudam a permanecer no tema. Talvez mais importante do que falar o que aconteceu é falar de como aconteceu.
O Museu do Holocausto em Curitiba, por exemplo, deveria ser visita obrigatória. Esclarece como se deu o início (por favor, não me diga que não conhece).
Bispo me joga na vida quilombola. Existem mais de mil Quilombos no Brasil e eu desconhecia. No Paraná, quem diria, há alguns, dois bem pertinhos a Curitiba, em cidades da Região Metropolitana, Campo Largo e Contenda. Por acaso, “De onde eles vêm”, de Tenório, piscou pra mim e pulou pra dentro da sacola. Entro na história crua e cruel sobre o ingresso dos primeiros cotistas na universidade brasileira. Não consigo largar (leio sempre mais de um livro ao mesmo tempo) e, sem querer, lembro de já ter ouvido pessoas com muitas posses dizer que queria cota para seus filhos também. É difícil ter esperança.
Chuva
Encontrei o livro do Tenório porque escolhi me abrigar na Casa Bradesco, na Cidade Matarazzo. Fugia da chuva grossa que despencava no céu paulistano.
“Vai derreter?”, escutei uma vez da atriz Elke Maravilha – que vivia espalhafatosamente feliz – ao ouvir a minha reclamação sobre o tempo. Não reclamo mais, até porque as árvores gostam. Mas confesso: fujo.
A escolha do espaço poupava os meus cabelos de se arrepiarem e me livrava de um resfriado. Era só descer do uber e andar poucos metros – aos domingos, a Paulista fica fechada ao trânsito e dificulta o acesso aos museus da avenida.
Fui à Casa Bradesco atrás de conhecer a proposta da Sala Acima, um espaço dedicado à economia criativa e todas as conexões possíveis de todas as linguagens artísticas. Acho estranho conhecer ou gostar apenas de uma coisa. Por querer saber de tudo (e não saber nada), tornei-me eclética. Pena, o espaço só teria atividade à noite.
Então perco (ou ganho) o tempo entre as prateleiras cheias. De repente, meus olhos miram um pai, com um pesado livro de arte apoiado nos joelhos, folheando para um atento bebê sentado em seu carrinho. Enquanto constato a morte da reflexão, o respiro poético me dá um alento.
Com a Sala Acima fechada, aproveitei pra caminhar mais uma vez entre os fios de seda bordados em paisagens enormes e florestas esculpidas em papelão pela artista plástica francesa Eva Jospin (que já passou pelo MON, em Curitiba).

Ameaça e refúgio nesta vida ambígua que nos joga de um lado ao outro. Na exposição, vejo o tempo em camadas (reais e imaginárias). Uma exuberância simples. A “selva reinventada” que ela cria me lembra que eu mesma tento me reinventar a todo tempo. “Quem fica parado é poste”, diria o Macaco Simão (colunista da Folha de São Paulo).
Tudo isso me leva a pensar na trama de ingredientes nativos que se entrelaçam com memória, com o saber-fazer dos povos originários e criam a nossa identidade (que ignoramos). “A culinária é cultura”, escuto Marilena Chaui. Um dia vamos acordar, reflito.
Floresta na boca – pessoas, paisagens e alimentos

Para a chef Bel Coelho e o ecólogo Jerônimo Villa- Boas, a floresta é real. Tentam nos salvar. Eles fizeram uma imersão no território amazônico, que virou livro editado pela Fósforo, financiado pelo Instituto Arapyaú, e também um documentário.
E se o Floresta na boca – pessoas, paisagens e alimentos ficou sensacional (já encomendei o meu), mais sensacional é a notícia que eles continuarão o trabalho de pesquisa. Teremos outros livros: um para cada bioma. Tentei colocar a Mata Atlântica na frente, porque toca o Paraná, mas me disseram que o próximo já está definido e será sobre o Cerrado.
A conclusão deles é de que se trata mais de territórios porque nos biomas estão pessoas, histórias e ingredientes (são mais de 60) reveladores da cultura alimentar amazônica. Um glossário dá conta de relacionar tudo.
Mexer com identidade mexeu comigo. Passei a vida (muito mais da metade) tentando saber quem eu sou e o que vim fazer aqui. Afinal, qual é o meu papel no mundo? Agora, já desconfio de algumas coisas, mas ainda sem muitas certezas.
E de identidade pessoal para à coletiva. Profissionalmente, entro novamente na discussão iniciada lá em 2016 sobre qual seria a da gastronomia paranaense.
Encerrada a trajetória do projeto Gastronomia Paraná, que toquei por uns bons anos, recomeço agora no MoviMente, junto ao grupo que trabalha para “promover a gastronomia local”. Mas, infelizmente, vejo que não descemos às origens. Achamos (erroneamente) que somos resultados da mistura de povos europeus. Somos também, mas desprezamos os povos originários e a influência africana. Perdemos o rumo.
Para Bel, “comer tem embasamento histórico e é conhecimento passado por gerações”. É preciso valorizar os sistemas produtivos e conservar a cultura alimentar. Além disso, é uma maneira de defender ingredientes nativos e preservar a biodiversidade.
O documentário foi patrocinado pela Open Society Foundation, Instituto Imbuzeiro e Google.org. Será exibido durante a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, no dia 15 de novembro, no Museu das Amazônias. Os direitos autorais da publicação serão destinados integralmente às organizações de base comunitária que contribuíram para sua elaboração.
Restaurantes

Saí da apresentação da Bel Coelho direto ao restaurante Clandestina, que ainda não conhecia. Fã da chef desde os tempos do menu sobre as nossas raízes no candomblé, adorei o Cuia, junto à livraria Megafauna, no Copan – faltava esse.
Jantava sozinha e entre um pedido e outro, conversava com a Léia. Achei o sotaque um pouco diferente e descobri sua origem: Moçambique, país vizinho da África do Sul.
Lá estava eu, de novo, com as lembranças na cabeça. Quando ela falou, surpresa:
- Você foi! E o que achou?
- Amei, respondi.
- As pessoas não são acolhedoras? A comida não é maravilhosa? E a natureza? Não é lindo lá?
Respondia “sim” a cada pergunta dela.
Pelo jeito, vou esticar as recordações até alguém reclamar (o universo está conspirando).
Jospin também produziu para a Maison Ruinart, trabalhando com as vinhas e cavernas da região de Champagne, na França. Eu, além de invejá-la, degustei com lentidão o tempo no Clandestina pra compensar.
Mordi delicadamente o guioza de pato, limpando com a língua o caldo escuro que deslizava pra fora na boca. Em intervalos regulares, dava uns goles no Les Beauments Chablis e voltava para as lembranças.
Depois, me esbaldei no tortelli de queijo Quina com caldo de cebola caramelizada e cogumelos. Fujo do mundo que me assusta.
