“Posso não concordar com nenhuma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Uma enorme besteira. Mas vamos por partes.
Dizem que essa frase é do filósofo Voltaire. Não é. Voltaire jamais escreveu sua frase mais conhecida. Ele usou o Chat GPT, professor? Não exatamente. A inteligência por trás da frase não era artificial, mas de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall. Ao cunhá-la, em 1906, mais de um século depois da morte do filósofo, a autora buscou sintetizar o pensamento do filósofo sobre o tema – e não o citar literalmente.
A falsa atribuição, no entanto, é a menor das inconsistências. Existe na frase um problema de fundo, que episódios recentes ajudam a demonstrar: a garantia, amplamente recepcionada em constituições nacionais e tratados internacionais, de que nem tudo deve ser dito.
Ninguém precisa ter cursado Direito para entender que o discurso também pode ser criminoso. O racismo talvez seja o exemplo mais evidente: crime inafiançável e imprescritível segundo a Constituição Federal de 1988, regulamentado por lei no ano seguinte e atualizado algumas vezes desde então. Há outros. A homofobia foi equiparada ao racismo pelo STF em 2019. O antissemitismo é condenado no mundo inteiro desde o Holocausto. Injúria, calúnia e difamação são crimes positivados tanto no Código Penal quanto no Código Civil, e por aí vai.
A liberdade de expressão não é absoluta em nenhum país do mundo – e é fundamental que ela continue não sendo.
Salvo raras (e canalhíssimas) exceções, ninguém em sã consciência defenderia o direito absoluto de dizer o que der na telha. O leitor defenderia até a morte o direito de nazistas proclamarem sua cartilha eugenista? A leitora defenderia até a morte o direito de fazer apologia à tortura ou ao extermínio dos diferentes?
Quando surgiu, no alto iluminismo, esboçada na declaração de direitos da Inglaterra (1689) e na declaração da Virgínia (1776) e consolidada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por ocasião da Revolução Francesa, a liberdade de expressão assentava-se sobre o óbvio: a necessidade de garantir a livre manifestação contra os governos absolutistas e a apropriação da legalidade por Estados despóticos. O conceito nasceu, portanto, como direito negativo, ou seja, a previsão de limites para que o Estado não intervenha na individualidade das pessoas.
O que se vê, em 2025, nas redes sociais e no extremismo de direita, é o inverso: a reivindicação da liberdade de expressão para atentar contra a individualidade. Ser racista à vontade (“não se pode nem fazer piada, mais!”), promover a homofobia,intimidar mulheres, difundir a xenofobia, criminalizar a esquerda, disseminar o ódio.
É neste contexto que devemos observar com atenção o que vem acontecendo no Brasil e no mundo. Jair Bolsonaro não é um legionário da liberdade de expressão como quer fazer crer a horda bolsonarista – e parte da imprensa, mais uma vez adepta do mau jornalismo. Em nenhum lugar do mundo a liberdade de expressão está acima da lei, não quando a lei está assentada num sistema de governo democrático, com legislativo e judiciário independentes etc. As leis que justificam a prisão domiciliar do ex-presidente não são marciais, não estão baseadas em atos institucionais editados por um comitê central ou pela elite fardada.
Ao mesmo tempo, e embora nem todos os soldados tenham clareza disso, a meta dessa direita hidrofóbica é cada vez mais calar as vozes dissonantes enquanto espalham a lorota de que defendem a livre manifestação do pensamento. Balela! Se fosse assim, Donald Trump, por exemplo, não teria concebido uma lista de livros proibidos, como fez em fevereiro, banindo das bibliotecas e escolas públicas, entre outros, o inofensivo “Freckleface Strawberry” (“Morango Sardento”), livro infantil de Juliane Moore. Na obra, a atriz-escritora aborda o tema das diferenças a partir de um lugar de fala que não deixa de ser o da branquitude, o que torna o episódio ainda mais surreal: uma garota de 7 anos não gosta de suas sardas e aprende a conviver com elas ao perceber que todo mundo é diferente entre si – e que a diversidade não é um defeito.
No Brasil, de forma similar, o pensamento continua criminalizado por essa gente. Em 2024, pelo menos três estados baniram o premiado “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório.
Nessa primeira semana de agosto, a prefeitura de São Paulo rasgou o compromisso de ceder a Praça das Artes, um espaço cultural no centro da cidade, para a realização da Flipei, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. A decisão foi tomada na antevéspera da abertura, sob a alegação de que se trata de um evento de caráter político. A mesma entidade, vinculada ao governo Ricardo Nunes, administra o Theatro Municipal, que foi palco de uma homenagem a Michele Bolsonaro um ano atrás, quando a ex-primeira-dama recebeu o título de cidadã paulistana. Por certo, aquele foi um evento cultural, enquanto a feira do livro é um evento político. Sei.
A razão de fundo do veto? Uma programação potente, com mesas que abordarão até domingo, dia 10 – agora em espaços diversos, como o Galpão Cultural Elza Soares, do MST –, temas absolutamente atuais e que entremeiam sobremaneira a produção literária contemporânea, entre os quais a questão palestina, com uma necessária abordagem crítica do genocídio que Israel vem cometendo contra os vizinhos.
Será mesmo que a defesa da liberdade de expressão é um valor para quem se mancomuna com o lobby sionista a fim de perseguir autores, censurar debates e substituir o pensamento crítico por tarjas, antolhos e cabrestos?
* Camilo Vannuchi é jornalista e escritor, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, autor dos livros Eu só disse meu nome (Discurso Direto) e Marisa Letícia Lula da Silva (Alameda), entre outros, e do podcast Nunca Mais. Foi membro da Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo e Secretário de Cultura de Diadema (SP).