Skip to content Skip to footer

Kirk, a imprensa, a desinformação e a carne mais barata do mercado

Chacina no Rio
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Foi no mês passado. A extrema direita nos ensinou a lição de que não é aceitável comemorar a morte de alguém. Ultrajados, próceres da direita fanatizada perseguiram em campanhas orquestradas quem ousasse fazer piada ou discordar da santidade do supremacista branco Charles Kirk, assassinado, desgraçadamente para eles, não por um negro ou por um árabe, mas por alguém da própria comunidade.  

Profissionais citam publicações em redes sociais e conversas com colegas como decisivas para que fossem demitidos, cancelados os que se atravessem a denunciar o uso político da morte ou constatar que foi a própria conduta de ódio e preconceito que levou Kirk, misógino e racista, a sua última performance antes de ser abatido.

Aqui no Rio Grande do Sul, em Bento Gonçalves, a prefeitura afastou um professor porque considerou que a charge publicada por ele comemorava a morte de uma pessoa. Para a defesa, nas charges, o professor “usou a ironia do caso, uma vez que Kirk morreu da forma como defendeu que poderia acontecer”.

Comentaristas, editoriais, formadores de opinião apelaram para nosso senso de humanidade, pediram concórdia, argumentaram que a polarização era o mal a corroer nossas democracias. Charles era um pai de família, de bem, bradaram. E branco.

Foi tudo isso logo ali, no mês passado. E então chegaram as 24 horas de horror da maior matança da nossa história de operações policiais: planejada, confessada, defendida, justificada. Os comentários da direita nas redes sociais sobre a morte de dezenas de jovens, carne barata do tráfico, seriam de fazer corar até o extremista Kirk. Uma música serve como trilha sonora da barbárie festejada pelos ultrajados de outrora:

A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Só-só cego não vê)

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquíatricos

A direita está em festa. Urra de alívio. Bem mais de uma centena de corpos enfileirados, mutilados, com marcas de cordas, tiros na nuca, suspeitos merecedores da armadilha letal. A estratégia da barbárie como revide político. Quem protesta será acusado de defender bandidos.

Como falou a deputada Benedita da Silva, única ex-governadora do Rio a não carregar processos nas costas, o que está sendo defendida é a integridade das famílias de trabalhadores e trabalhadoras, as que limpam as casas, os que dirigem os carros, os que servem a alta sociedade de onde parte sim a estrutura, o dinheiro e a demanda que sustenta o tráfico. É vergonhosa esta cifra, mais de uma centena de pessoas mortas, abatidas a tiros no meio das rotinas de comunidades inteiras.

De novo a cobertura midiática e o baile de palavras vazias, assépticas, contribuindo para a farsa sangrenta: megaoperação, dizem. Guerra às drogas, carimbam com vinhetas. Paz, concórdia, entendimento, integração, apelam. À perplexidade do Presidente diante da desavergonhada selvageria de um governador de relações duvidosa e quilos de acusações, classificam como desentendimento das autoridades. E vaticinam: precisam atuar juntos, ignorando que muito próximos das autoridades cariocas estão os verdadeiros chefes e a alta hierarquia do tráfico.

T H Joias é só um exemplo, condenado a 14 anos de prisão e guindado a assumir uma cadeira na Alerj por manobra adivinhem de quem, do governador do “some ou suma”, que na maior estratégia cara de pau, lamentou a solidão para executar a matança. E no ruído incessante das opiniões e coberturas, segue a cantilena dos pedidos de união e cooperação, como se ignorassem que a cooperação pode, na prática, dar informação privilegiada para os criminosos que ocupam as zonas elegantes e os palácios em declínio numa cidade entorpecida.  

Mas tem um fator que precisamos nos atentar. A tal operação matança foi planejada sim, como balbucia o governador. Não há dúvida disso. Porque a sequência de postagens, imagens e versões já estava milimetricamente organizada.

Os tiroteios no Rio não geraram só medo nas ruas, mas também uma avalanche de desinformação nas redes. A pós-venda do espetáculo de horrores estava bem definida. Teve de tudo para confundir e defender a vergonhosa operação: vídeos de Gaza, imagens antigas e até conteúdo gerado por Inteligência Artificial ainda estão circulando como se fossem dessa operação no Rio.

O pesquisador Davi Nemer, referência em antropologia da Informática e que estuda como a tecnologia transforma comunidades, professor da Universidade de Kentuchy e autor do livro Favela Digital, classificou os dias de fúria no Rio de Janeiro como caos desinformacional. O que significa? É quando a incerteza vira combustível para a manipulação.

Os algoritmos do X e do Instagram amplificam o medo, e a desinformação se espalha até seis vezes mais rápido do que a verdade. Há também intenção política nisso, obviamente: setores da extrema direita usam o caos para gerar capital simbólico contra a esquerda — mesmo quando a segurança do Rio está nas mãos do governo do PL. A desinformação não só distorce os fatos — ela manipula o nosso medo, alerta o pesquisador. Ele relata que nos grupos de WhatsApp e Telegram monitorados na pesquisa conduzida por ele circulou de tudo um pouco em termos de violência, incluindo áudios desesperados de gente que nem estava no Rio.

Esse tipo de material é altamente eficaz em contextos de incerteza. Mobiliza emoções e comoções, como medo, angústia e ansiedade, e são essas emoções justamente que fazem a festa dos algoritmos, porque mantêm as pessoas engajadas e reativas. Aciona afetos intensos e oferece uma aparência de sentido imediato. Justamente em um momento em que não há clareza e que os sentidos e propósitos ainda estão em disputa. 

A desinformação, como lembra o pesquisador, não é um subproduto do caos. Neste momento ela é intencionalmente produzida por quem deseja reconfigurar a percepção pública ao seu favor. 

A extrema direita tem instrumentalizado esses momentos para gerar capital simbólico. Teve ainda vários apelos para uma intervenção internacional dos Estados Unidos tendo como pretexto o combate ao narcotráfico. O resultado é um cenário de grande confusão informacional que intensifica o medo e fragmenta o debate público. O primeiro gesto de cidadania digital é bem simples, na dúvida, não compartilhe.

E quanto aos nobres colegas jornalistas que reivindicam o fim da polarização e unidade para defender a democracia, cuidado para não participarem como coadjuvantes do espetáculo fraudulento que simula posições institucionais e democráticas para ocultar interesses inconfessos.

O termo democracia, como já sugeriu o filósofo Gallie (1956, pg 13) é essencialmente contestado e a evidência empírica é o arbitro final, não está na esfera de gostos e preferências. Alguém tente me convencer que a chacina conduzida no Rio tem algum centímetro de legitimidade democrática, mesmo chamada de guerra ou de operação técnica. Os corpos negros massacrados, o desespero e o cinismo são o árbitro final para nos contar mais um triste capítulo da barbárie e do golpe ainda em curso.

Sandra Bitencourt

Jornalista, doutora, diretora do INP, pesquisadora da UFRGS e coordenadora da Rede Combate à Desinformação. Estuda mídia, política e tragédias climáticas.

Mais Matérias

31 out 2025

Vinho Tinto de Sangue: a política de segurança pública que brinda mortes para tentar ressuscitar o projeto fascista no Brasil

O cenário, infelizmente comum, das operações policiais, nesta semana, foi levado às últimas consequências
30 out 2025

A paz através da verdade

Tão importante como as emoções sentidas é a expectativa de que o Brasil dê um passo a mais na consolidação da memória
29 out 2025

Vida e morte periférica

Hoje é dia de raiva, não quero misturar as coisas. Mas podemos pelo menos esperar justiça?
29 out 2025

Diversão na guerra cotidiana

Mitos e África do Sul embrulhados para a coluna de estreia
27 out 2025

Um marco histórico na luta por direitos: as propostas da 4ª Conferência Nacional LGBTI+

Conferência mostrou, mais uma vez, que o amor, a ciência e a política caminham juntos na construção de um Brasil que respeite todas as formas de ser e de amar

Como você se sente com esta matéria?

Vamos construir a notícia juntos