A indiferença judicial ante repetidas práticas criminosas costuma ser um elemento disfuncional em qualquer sociedade. Em alguns casos, a leniência costuma cobrar um preço ainda mais salgado, quando os agentes destas práticas ocupam posições de poder, a partir das quais ameaçam, sem contenções, valores éticos e políticos essenciais ao convívio social e à integridade do Estado.
Jair Bolsonaro despontou para a política logo após cometer atos criminosos no seio das Forças Armadas, ainda como oficial do Exército, sem que houvesse a correspondente e necessária punição. Desde então, aparelhou um discurso associado à imundície moral dos porões da ditadura, como forma de manter uma base de apoio firme à sua trajetória eleitoral.
Houvesse a devida prestação de contas merecida pelos torturadores e assassinos ligados ao regime militar, um personagem como ele dificilmente conseguiria sobreviver por décadas no exercício de um mandato parlamentar.
Em meados da década passada, uma conjunção de fatores possibilitou que Bolsonaro fosse catapultado à condição de liderança nacional, manobrando um discurso cínico e agressivo de índole fascista, perigosamente tolerado pelas instâncias éticas parlamentares e pela esfera judicial, que menosprezaram diversos episódios reveladores de seu total desapreço pela democracia, pelos direitos humanos e pela legalidade. Sua chegada à presidência da República potencializou o alcance de sua ação criminosa.
No exercício do poder, Bolsonaro intencionalmente investiu contra políticas públicas essenciais à população, ao tempo em que ultrapassou diversas linhas vermelhas de garantia das instituições democráticas do Estado brasileiro. Foram quatro anos de sucessivos e graves crimes comuns e de responsabilidade perpetrados de maneira perversa e sórdida por Jair Bolsonaro.
O período pandêmico criou condições particularmente favoráveis para que a crueldade delituosa do então presidente aprofundasse condutas aberrantemente criminosas, em inúmeras vertentes. Não apenas Bolsonaro influiu diretamente em prol da escalada brutal de mortes associadas ao coronavírus, retardando dolosamente a compra de vacinas e privando serviços de saúde de insumos críticos, como oxigênio.
De outra parte, a pandemia permitiu que ele desencadeasse sem disfarces uma ofensiva antidemocrática, inaugurando manifestações associadas a pautas golpistas contra os demais poderes, Judiciário e Legislativo, e contra gestões de governos estaduais, então dedicadas a resistir à inoperância e à irresponsabilidade da administração federal. Já em 2020, registre-se, ele comandou uma manifestação marcada pelo saudosismo da ditadura militar, em frente ao quartel-general do Exército em Brasília.
De nada adiantaram, naquela época, as diversas denúncias de crimes de responsabilidade, empenhadas a propiciar a abertura de processos de impeachment, todas recheadas de farta comprovação fática suficiente a tanto. Tampouco deram resultado as denúncias de práticas criminosas comuns dirigidas à Procuradoria Geral da República para o devido processamento criminal. As omissões e evasivas do então presidente da Câmara dos Deputados e do Procurador-Geral da República incumbente garantiram a continuidade progressiva da dinâmica criminosa de Jair Bolsonaro.
Como a impunidade serve como estímulo à reiteração delituosa e ao seu agravamento, Bolsonaro passou a hostilizar com maior virulência a credibilidade do processo eleitoral que se avizinhava em 2022, atacando de maneira tresloucada as autoridades da Justiça Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, valendo-se do clima de fanatismo extremista e radicalização instaurado em manifestações como as realizadas na data nacional do 7 de setembro.
Diante do resultado das eleições presidenciais, que o desfavorecera, o ainda presidente Jair Bolsonaro passou a conspirar desenfreadamente para houvesse um golpe de Estado, fomentando a intervenção das Forças Armadas nesse sentido. Na etapa anterior à posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, a fermentação golpista avançou a ponto de concretizar distúrbios e vandalizações no dia da diplomação dos ganhadores da eleição pelo TSE; organizar um plano de atentado a bomba no aeroporto de Brasília, tempestivamente reprimido pelos organismos policiais e; montar acampamentos de manifestantes, em frente a quarteis militares, país afora, com o objetivo absurdo de compelir os comandos militares a impedirem a transição de poder.
Além disso, em torno de Jair Bolsonaro, naquela fase, gravitaram inciativas de cooptação de comandantes militares para colaborarem com a ação subversiva, inclusive mediante a elaboração clandestina de minutas de atos oficiais que cancelariam a proclamação dos mandatários eleitos e puniriam autoridades judiciais, como forma de viabilizar a quartelada.
Mais tarde, investigações da Polícia Federal reuniram provas robustas de que a trama incluía o assassinato dos integrantes da chapa presidencial eleita e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. E, mesmo após a posse do presidente Lula e a instauração do novo governo, a conspiração golpista produziu a abominável manifestação do 8 de janeiro de 2023, que resultou em atos de destruição das sedes dos três poderes, expondo com toda crueza a culminância da tentativa de golpe contra as instituições democráticas em nosso país, felizmente frustrada.
Lógico que toda essa articulada ação criminosa, voltada a implementar um golpe de Estado e a abolir o Estado Democrático de Direito, teve a todo tempo Jair Bolsonaro como líder incontrastável. O curso da apuração policial minuciosa correspondente, sistematizada na denúncia apresentada pelo atual Procurador-Geral da República, não deixa margem de dúvida quanto a essa evidência. À luz das provas coletadas, ele funcionava como eixo central, protagonizando os impulsos golpistas e coordenando as ações, direta ou indiretamente, no interior de uma cúpula formada por militares de elevadas patentes e auxiliares ou assessores próximos.
Em 2 de setembro de 2025, afinal, na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) terá início o julgamento, uma vez asseguradas plenamente à defesa de Jair Bolsonaro, e aos demais acusados pertencentes ao núcleo dirigente da trama golpista, todas as prerrogativas próprias ao devido processo legal, com acesso amplo dos seus advogados aos magistrados julgadores por meios escritos e em audiências presenciais para argumentarem em favor de seus clientes.
Desse modo, encerrando um largo e deplorável ciclo de tolerância do Estado brasileiro com o padrão de conduta criminosa de Jair Bolsonaro, tudo indica que seus atos ignominiosos não mais seguirão impunes. Decerto, outros procedimentos haverão de seguir o seu curso ou ser deflagrados, pois a trilha delituosa desse sinistro personagem é vasta e variada, inclusive no terreno da corrupção mais rasteira e desavergonhada.
De todo modo, o país merece desfrutar nesta semana de um merecido júbilo, por haver logrado instaurar um tribunal dedicado a imputar crimes praticados contra os valores mais relevantes que pode aspirar defender uma sociedade democrática.
Mauro Menezes é advogado, doutor em Ciências Jurídicas e Políticas, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e conselheiro do Observatório da Democracia da AGU.