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Entre trilhos e engarrafamentos: o Brasil que odeia o trânsito, mas ama o carro!

O brasileiro pega metrô em Paris como se tivesse nascido no bairro. Aprende rápido, entende o mapa, respeita a fila, se orgulha ao chegar no destino sem se perder. Mas basta voltar ao Brasil para tudo isso evaporar: prefere o carro, encara engarrafamento diário, paga caro por estacionamento e ainda diz que “é mais prático”. A culpa não é só da infraestrutura nas cidades brasileiras, embora sim, ela seja um desastre em vários lugares. O problema também é cultural, e isso é o que dói admitir.

É fato que o transporte público brasileiro está longe de ser exemplar. Em muitas cidades, ele é deficiente, limitado e maltratado por sucessivas gestões. Faltam ônibus, faltam trens, faltam horários que funcionem, segurança, conforto e integração. Faltam políticas públicas que olhem para a mobilidade urbana com mais ambição do que a de pintar ciclovias improvisadas e dizer que está tudo resolvido. Falta olhar para o caminho que a mulher, negra, periférica e pessoas com deficiência fazem. Em São Paulo, por exemplo, o tempo médio de deslocamento de quem usa transporte coletivo pode chegar a duas horas e meia por dia, segundo a Confederação Nacional dos Municípios. Já quem vai de carro, embora enfrente congestionamentos, geralmente reduz esse tempo para cerca de uma hora e meia. Uma hora por dia de vida vale quanto, não é mesmo?

À primeira vista, a escolha pelo carro parece racional. Mas não é só sobre tempo, é sobre imagem. Existe no Brasil uma cultura profundamente enraizada que associa carro à ascensão social. O carro é tratado como um prêmio, um símbolo de sucesso. E o transporte público, ao contrário, é visto como punição. Ninguém quer ser associado ao “busão lotado”. Não porque ele atrasa, mas porque ele revela.  E ninguém quer ser revelado desse jeito.

Essa mentalidade, claro, não atravessa todo mundo da mesma forma. Há milhões de brasileiros para quem o transporte coletivo não é uma escolha, mas uma necessidade inegociável. Pessoas que não podem, mesmo que quisessem, “escolher o carro”. Mas é justamente entre aqueles que têm essa escolha que a cultura do carro se transforma em fetiche. Um objeto de desejo que não serve apenas para se locomover, mas para sinalizar pertencimento, diferenciação e vitória individual.

Esse desprezo é aprendido cedo. Está nas novelas, nos comerciais, nas conversas de elevador. Crescemos ouvindo que “quando eu conseguir, vou comprar um carro”. E esse desejo coletivo não tem a ver com eficiência, tem a ver com distinção. O carro serve tanto para te locomover quanto para te separar: do pobre, do operário, do trabalhador “sem futuro” que depende de uma catraca e de uma esperança.

Mas não dá para fingir que a culpa é apenas da mentalidade do cidadão. A infraestrutura colabora ativamente para o fracasso do transporte público. Dados do Ipea mostram que 44,3% dos brasileiros dependem de ônibus, trem ou metrô. Mas a frota de veículos particulares cresce sem freio, e os sistemas coletivos seguem sub financiados, sucateados, empurrados para a margem da política urbana. O brasileiro não rejeita o transporte público só porque tem preconceito. Ele rejeita porque, muitas vezes, ele realmente é ruim.

Mesmo assim, há cidades onde a oferta é razoável  e a rejeição persiste. Em São Paulo, a malha metroferroviária cobre 374 quilômetros e transporta cerca de 7,8 milhões de pessoas por dia útil. Mas muitos preferem enfrentar o trânsito de carro, por escolha, não por necessidade. O mesmo ocorre em capitais como Brasília, Curitiba e Porto Alegre. A questão, então, deixa de ser apenas sobre infraestrutura: é também sobre narrativa. Sobre o que significa andar de metrô. E, mais profundamente, sobre o que significa não andar de carro.

A comparação com cidades como Paris ou Londres não pretende idealizar sistemas que também têm falhas. Mas o contraste ajuda a iluminar o que há de mais invisível: o peso simbólico do transporte. Quando o brasileiro vai para fora do país e pega metrô sem reclamar, não é só porque lá funciona. É também porque, fora do Brasil, o transporte público é desassociado da ideia de fracasso. Em Paris, todo mundo pega metrô. Em Londres, banqueiros e faxineiras se esbarram no mesmo vagão. A experiência é coletiva e não carrega o mesmo estigma. Aqui, ao contrário, transporte público virou sinônimo de falta de escolha, e isso é tão violento quanto qualquer falha de planejamento urbano.

A solução não está em forçar as pessoas a abandonarem o carro por culpa. Está em criar uma infraestrutura que funcione de verdade e, ao mesmo tempo, desconstruir a ideia de que andar de ônibus ou metrô é humilhação. Isso exige política pública, mas exige também mudança da cultura. Como diria o querido antropólogo Michel Alcoforado: “tudo é culpa da cultura”. A cidade do futuro não será feita apenas de trilhos e corredores. Ela será feita da vontade coletiva de compartilhar espaço e abrir mão do privilégio disfarçado de liberdade e, aqui, não posso ser hipócrita, me incluo.

Enquanto isso não mudar, continuaremos nesse looping: odiando o trânsito, alimentando o trânsito, sonhando com a “Paris de dez minutos” e estacionando em fila dupla no Brasil.

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