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Entre o código e o corpo: a tecnologia a serviço da poesia

Inteligência Artificial
(Foto: Freepik/Reprodução)

Fui convidado para o “Encontro de Produtores Culturais” que promete pensar o impacto das novas tecnologias no futuro da produção cultural na mesa que vou participar. Um convite que, confesso, me atravessou. Não apenas porque o tema é urgente — afinal, a cultura vive mergulhada em um turbilhão de transformações —, mas porque ele me provoca no que tenho de mais inquieto: essa relação entre encantamento e desconfiança diante das máquinas que agora escrevem, desenham, cantam e, quem sabe, sentem por nós.

Vivemos tempos em que a tecnologia não apenas muda a forma de produzir cultura, mas altera a própria forma de ver, sentir e acessar o mundo. Somos mediados por telas, algoritmos e fluxos de dados que filtram o real e reconfiguram nossas relações humanas. E eu, que me confesso muitas vezes dominado por essa mediação, sigo fascinado e ao mesmo tempo em alerta. Encantado pelas possibilidades, apaixonado pelas descobertas, mas também crítico — e, talvez, pessimista na análise, ainda que otimista na ação.

Tenho buscado, de forma quase obsessiva, dominar todas as tecnologias que atravessam o meu fazer. Porque acredito ser necessário compreender a engrenagem para poder criticá-la. Dominar o instrumento para poder libertar-se dele. E é neste exercício — de amor e resistência — que encontro a dimensão pedagógica da tecnologia. É preciso, como ensinou Paulo Freire, partir da realidade concreta: do mundo vivido, da prática cotidiana, do chão onde a tecnologia encontra o corpo, o tempo e a cultura.

A febre da Inteligência Artificial e o “lerolero” automatizado

Hoje, estamos imersos na era das IAs generativas — as Large Language Models (LLMs) — como o ChatGPT, o DeepSeek, o Claude, o Gemini e tantos outros que se multiplicam a cada semana. Eles escrevem projetos, roteiros, relatórios e até poesias. E, sim, há algo de fascinante nisso. Mas também há um risco evidente: a padronização da criação.

Nos editais de fomento à cultura, por exemplo, multiplicam-se os projetos redigidos “na íntegra” por IA. Textos bem formatados, coerentes, cheios de jargões técnicos, mas vazios de alma. É o que chamo de “lerolero automatizado”: uma estética do projeto que não vem do chão da experiência, mas do banco de dados global. E a pergunta que não me larga é: será que isso funciona? Será que um avaliador — humano, sensível, experiente — não percebe quando um texto carece de vida?

Estudos recentes já apontam outro fenômeno curioso: pessoas que produzem conteúdo com IA têm dificuldade em memorizar ou se apropriar do que criaram. A máquina gera o texto, mas o corpo não absorve. E o que não passa pelo corpo, pela experiência, pela elaboração subjetiva, dificilmente se transforma em conhecimento. O produto pode existir, mas o aprendizado se esvai. Então, de que produtividade estamos falando?

A tecnologia só potencializa o que já dominamos

A partir dessa constatação, construo minha tese: a Inteligência Artificial só é capaz de potencializar a ação humana se nós já dominarmos a atividade que queremos aprimorar.

Não se faz um bom projeto cultural com IA sem compreender profundamente o que é um projeto cultural. Não se faz um bom orçamento automatizado sem antes dominar a lógica dos custos, dos cachês, das planilhas, das planificações e dos critérios. Não se escreve um bom texto com IA sem antes ter se debruçado sobre livros, contextos, histórias e debates.

A tecnologia, nesse sentido, não substitui a experiência — ela a expande. É uma prótese cognitiva, não um substituto da sensibilidade. É a força bruta que pode estar a serviço da sutileza humana.

O produtor de prompts: uma nova profissão da cultura

Nesse novo cenário, emerge uma figura que, acredito, será cada vez mais necessária: o produtor de prompts.

Esse profissional domina tanto a linguagem da cultura quanto a das máquinas. Ele não apenas digita comandos: ele formula perguntas, organiza ideias, interpreta contextos, sintetiza realidades. É alguém capaz de traduzir uma roda de conversa de curadoria de um festival em um texto coeso e sensível. Ou de sistematizar, em tempo real, as ideias de um grupo diverso — sem perder o ritmo, o sotaque, o afeto.

O produtor de prompts é, no fundo, um novo tipo de relator cultural — um mediador entre o humano e o digital. Ele revisa orçamentos, padroniza dados, identifica incoerências, propõe soluções. Mas para fazê-lo bem, precisa dominar o ofício. É preciso ser expert em cultura para comandar a máquina que te ajuda a produzir cultura.

Colocar a tecnologia a serviço da poesia

No fim das contas, o que busco é colocar a tecnologia a serviço da poesia. E aqui não falo apenas da poesia literal, mas da poesia da vida, da criação, do gesto humano de transformar o mundo com beleza e propósito.

A máquina pode calcular, simular, organizar — mas a poesia só nasce do humano. Só nós podemos atribuir sentido. A IA pode acelerar a força bruta do trabalho, mas é a nossa sensibilidade que dá direção a essa força.

Por isso, sigo acreditando — e praticando — que a tecnologia deve ser ferramenta, não destino. Que deve nos libertar, não nos substituir. E que o verdadeiro futuro da produção cultural não está nas máquinas que criam, mas nas pessoas que sabem usá-las para criar mundos mais justos, livres e inspiradores.

Porque, no fim, toda tecnologia é apenas isso: uma tentativa de ampliar o alcance da nossa imaginação. E é na imaginação que mora o que há de mais humano em nós.

Serviço: 

Pra quem quiser acompanhar, será no dia  28 de outubro das 16h as 17:30 e as inscrições são gratuitas em : https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScM5pSpyKPEzx_0t5KlvzIMiZGvg2egM7XYmVoTfKQ6wKH5tw/viewform?fbclid=PAT01DUANjrNRleHRuA2FlbQIxMAABp1gavzk3lPIAHcvX_Fw2bmxz9NmMyf1UcnTZGUaIuzA-TR8e9JR2e-7-Z_KK_aem_v3CMegZr_0-ALMoQRIJtEQ

João Paulo Mehl

Atua em cultura digital, sustentabilidade e fomento cultural. Coordena projetos na UFPR, no Soylocoporti, no Terraço Verde e no Propulsão Cultural.

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