Instigada pelo convite para aprofundar a visão além das sombras e pensar o BRASIL FORA DA CAVERNA, quero propor uma reflexão sobre o que significa de fato ler e interpretar a mídia – ou as mídias – e por que isso é fundamental para o Brasil neste contexto atual. Precisamos educar nosso olhar e compreender como se desenham as estratégias da tessitura dos sentidos. É nesse exercício que podemos entender a mídia e seu poder.
Vivemos num mundo midiático, a realidade é mediada, e não há volta quanto a isso. As pessoas podem desligar a TV, quebrar o computador, desligar o rádio, não usar celular – nada disso importa, pois “a mídia está em toda parte. É como o ar que respiramos”. A afirmação, talvez incômoda, é do professor e pesquisador britânico David Buckingham, autor de “Manifesto pela Educação Midiática”, que chegou à versão em língua portuguesa em 2023. Nesta publicação, sobre a qual produzi uma resenha para os Cadernos do Legislativo, da ALMG, ele enfatiza que há uma transformação do ambiente midiático global em um mundo de mediação quase total – tudo o que apreendemos da realidade e não está ao alcance direto dos nossos olhos é mediado, é apresentado pela mídia. E completa: “A mídia é uma dimensão central da vida contemporânea – da cultura, da política, da economia e das relações pessoais. A maioria das pessoas concorda que, numa sociedade intensamente mediada, os usuários de mídia precisam tornar-se mais autônomos, mais competentes e mais críticos”.
Do tradicional ao digital, o fantasma da concentração
O Brasil tem um complexo contexto informacional, em que a grande concentração dos meios de comunicação alia-se a um ambiente digital desafiador, sem regulamentação e com ampla adesão dos brasileiros. Não campo da mídia tradicional, poucos grupos empresariais detêm a esmagadora maioria dos meios de comunicação, o que possibilita à mídia corporativa ter o controle quase absoluto da produção das notícias e da distribuição, uma vez que esses meios alcançam todo o território nacional, chegando a todos os lares brasileiros. Por outro lado, o ambiente digital, que chegou a ser considerado, nos primórdios da internet como a grande Ágora a democratizar o acesso à comunicação, é controlado pelas Big Techs, gigantes transnacionais sem regulamentação que abrigam todo tipo de discurso.
Os desafios se sobrepõem, se acumulam e compõem um conjunto pernicioso para a democracia. Da Operação Lava Jato ao 8 de janeiro, o papel da mídias na vida nacional é crucial, determinante. Por isso, saber entender as estratégias, as configurações corporativas, os interesses por trás da notícia, as artimanhas do ecossistema de desinformação, tudo isso, na forma de construção de um pensamento crítico, é vital como a respiração.
É preciso consolidar nas pessoas, de modo eficaz, a percepção de que “a mídia não relata simplesmente e de modo transparente eventos que são ‘naturalmente’ notícias importantes em si mesmos”, como esclarece Stuart Hall. Há forças políticas e econômicas que delineiam os processos de produção e disseminação dos conteúdos circulantes. Por um lado, a mídia tradicional reconfigura o campo político, redesenha o cenário econômico, pauta agendas no campo social, transforma a justiça em espetáculo, apaga personagens; por outro, as redes sociais e as plataformas abrigam produtores de discurso de ódio, articuladores de golpes contra a democracia, fake news, consolidam a desinformação como arma política.
Portanto, é urgente que, tomados pelos princípios da educação libertadora de Paulo Freire, nós sejamos capazes de espalhar, pelo Brasil, a prática da construção do pensamento crítico pelo Brasil.
Do retrocesso civilizatório ao ecossistema de desinformação
No Brasil, desde o golpe contra a presidenta Dilma Roussef até os anos do governo Bolsonaro, vivemos num retrocesso civilizatório de proporções gigantescas, em todos os campos. Em 2022, com a vitória do presidente Lula, a promessa de novos tempos foi fortalecida – mas aí, vimos acontecer, sob as barbas das instituições, o atentado do 8 de Janeiro, quando multidões enfurecidas e alimentadas pelo ecossistema de desinformação bolsonarista depredou a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Esse ecossistema que se consolidou com o bolsonarismo pode ser compreendido como uma estrutura complexa e bem desenhada de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado (ressignificado, com novos sentidos) que envolve vários atores (incluindo representantes do Poder Público) e várias etapas: produção, circulação, consumo, reprodução, criação de agendas. É um ecossistema que se estruturou como suporte a determinado projeto político e que se construiu discursivamente e simbolicamente para isso. Posteriormente, a partir das investigações levadas à frente pela Policia Federal, o país conheceu as estratégias e o alcance dessa construção cuja principal arma é a desinformação.
E isso não é privilégio do Brasil. No século 21, a arquitetura da extrema direita atua com destreza no ambiente digital. A desinformação se torna arma de guerra. O caos, uma estratégia poderosa. E em pleno vigor por aqui, as dinâmicas do ecossistema de desinformação para garantir o tripé elaboração de conteúdo/transformação em produto midiático/disseminação em larga escala. Mas por aqui, essas dinâmicas, com financiamento e muitos atores expressivos, ganharam uma gigantesca proeminência, e criam confusão, fazem as pessoas duvidarem de tudo, minam a confiança nas instituições, inserem a insegurança. E o caos como estratégia, aliado a essas dinâmicas, desestabiliza o funcionamento dos Estados Nacionais. Institui-se, então, um cenário desordenado, caótico, de medo, onde nada funciona porque, a todo instante, aparece um novo e grande foco de incêndio.
Por isso, cada vez mais, precisamos falar para que todos entendam. Precisamos construir as pontes para o diálogo. Precisamos costurar o entendimento em relação aos acontecimentos. E precisamos saber comunicar. Saber mostrar, aos vários públicos, que há diversas formas de relatar um mesmo acontecimento e que cada escolha não é aleatória, mas se vincula a uma intencionalidade. E exatamente por isso, a concentração dos meios de comunicação nas mãos em poucos grupos é um desastre para a democracia porque, se não há pluralidade de vozes, os poucos grupos que produzem a notícia podem, por exemplo, decidir que a corrupção tem uma cor, ou dar a entender que o agro é pop. A concentração, em qualquer ambiente, possibilita à mídia construir consenso – e como nos lembra Chomsky, no mundo moderno, não é necessário mais provocar grandes guerras, basta fabricar o consenso em torno de determinadas ideias – e a partir daí, construir uma opinião pública. E tal cenário se potencializa, de modo gigantesco, com as Big Techs sem controle, que ameaçam e enfrentam os Estados Nacionais e suas instituições.
Encerro esta reflexão com o mestre Paulo Freire:
“Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes”.
Para ver além das sombras e entender tudo o que está acontecendo, vamos colocar em prática ações transformadoras para alcançar a nossa utopia de um país verdadeiramente democrático, decente, menos desigual e soberano.