O Brasil vive um momento em que duas potências históricas — a inventividade da economia criativa e a capacidade distributiva da economia solidária digital — podem e devem se aproximar para enfrentar os desafios da plataformização do mundo. Não se trata de escolher entre modelos, mas de torná-los forças em convergência por meio de um pacto capaz de fortalecer a soberania digital nacional, ampliar a autonomia econômica e garantir que o valor gerado pela nossa pluralidade cultural brasileira e pela inovação tecnológica prolifere entre nós.
O primeiro quarto do século XXI consolidou a economia digital como espinha dorsal das relações econômicas, culturais e sociais. Mas junto com as novas oportunidades, emergiu um risco estrutural: a captura e monopólio de dados, trabalho e valor concentrados nos domínios de poucas corporações globais, que moldam mercados, ditam comportamentos e estruturam políticas de forma opaca.
É o neoliberalismo esgotado se transmutando. Esse controle se manifesta também no campo simbólico, com a fragmentação da informação e a difusão subordinada a algoritmos que priorizam interesses privados sobre interesses comuns. É o que podemos chamar de colonialismo digital”: as grandes plataformas decidem quem vê, quem fala e quem é silenciado — cooptando dados pessoais e institucionais e determinando, por meio das novas tecnologias e da infraestrutura da internet, o alcance e até a própria (sub) existência de conteúdos artísticos.
No Brasil, essa realidade exige uma resposta estratégica que una criatividade, colaboração e soberania digital. A economia criativa já demonstrou sua potência: do artesanato ao audiovisual, da música às startups culturais, passando por ecossistemas de inovação social espalhados pelos territórios. Mas, sozinha, ela não é suficiente para reverter a lógica concentradora das grandes plataformas.
É preciso uma aliança Estado–sociedade civil–setor produtivo comprometido, capaz de construir alternativas robustas e inclusivas para a economia digital guiada pelo e para o comum, entendido como aquilo que é produzido, cuidado e usufruído coletivamente, sem captura por interesses exclusivos.
Essa agenda não se move no vazio. O mundo vive um acirramento das disputas pela soberania e o Brasil está no centro de interesses que não hesitam em usar o poder das plataformas para influenciar economias e democracias inteiras. É um cenário que conecta debates sobre cultura, economia e tecnologias ao enfrentamento de tentativas externas de enfraquecer nossa autonomia — ataques cada vez mais alicerçados no poder das big techs aliados à extrema direita global.
A experiência internacional mostra caminhos. A Europa discute e implementa políticas de plataformas cooperativas¹ e data trusts² para devolver aos cidadãos o controle sobre seus dados e garantir que o valor gerado circule localmente. Já em países como Canadá e Coreia do Sul, programas de fomento à economia criativa e à cultura digital são integrados a estratégias industriais e de inovação, garantindo infraestrutura e financiamento de longo prazo. Esses exemplos podem inspirar políticas no Brasil, adaptadas às nossas realidades territoriais, assegurando a autonomia tecnológica e considerando a pluralidade cultural.
Aqui, já temos sementes importantes: políticas de economia solidária, experiências de software livre, cooperativas de crédito comunitário, iniciativas culturais autogestionadas e redes de inovação social que articulam universidades, coletivos e empreendimentos de pequeno porte.
Mas sofremos com a perda de acervos digitais — resultado da fragilidade na preservação da memória cultural virtual — e com a falta de curadorias capazes de dar sentido e coerência a esse oceano de informação. Sem mediações que não dependam do mercado, a riqueza cultural se perde em meio ao ruído, por isso a importância de articularmos as forças em convergências, as do Estado, as das instituições de ensino, as das comunidades, as dos modelos alternativos de economia e as das culturas livres.
O que falta é escala e convergência — transformar essas iniciativas dispersas em uma estratégia nacional que trate a soberania digital como questão da radicalização do modelo de desenvolvimento. Isso exige investimentos estruturantes — de bancos públicos, fundos de desenvolvimento e investidores sociais — que apoiem a criação de plataformas digitais cooperativas, data centers regionais, redes logísticas e meios de pagamento alinhados a empreendimentos criativos e colaborativos. Ao mesmo tempo, deve incluir formação técnica e cultural de forma crítica para que trabalhadores possam protagonizar suas identidades num mercado global sem abrir mão de sua autonomia.
A aliança que defendemos não é apenas econômica: é cultural , política e ética. Ela parte do reconhecimento de que a pluralidade cultural brasileira é um ativo estratégico e que sua expressão no ambiente digital precisa estar protegida e fortalecida. Isso implica políticas que unam cultura, inovação e direitos digitais, garantindo que comunidades — urbanas e rurais, tradicionais e contemporâneas — tenham não só acesso às tecnologia, mas capacidade de moldá-las e participar de seus arranjos segundo seus interesses e modos de vida. Isso é politizar as tecnologias
Ao investir na interseção entre economia criativa, colaboração e soberania digital, o Brasil pode inaugurar um modelo alternativo ao das big techs: um ecossistema onde os fluxos de valor e conhecimento sejam compartilhados, co-contruídos, onde a inovação seja aberta e onde a cultura livre — viva, diversa e crítica — seja motor do projeto de radicalização do modelo de desenvolvimento. Essa não é apenas uma escolha ética ou estética; é uma estratégia de sobrevivência e prosperidade em um mundo cada vez mais mediado por plataformas.
O futuro será digital — mas não precisa ser concentrado. Com visão política, ousadia e cooperação entre Estado e sociedade, podemos fazer do digital um território colaborativo, soberano e profundamente brasileiro.
João Paulo Mehl
Vinícius Costa
¹ Plataformas cooperativas: modelos digitais em que usuários e trabalhadores são também proprietários e gestores da plataforma, compartilhando governança e resultados econômicos.
² Data trusts: estruturas jurídicas e institucionais criadas para gerir dados coletivos de forma segura, transparente e em benefício de seus titulares.