Teria o século XXI começado com o horroroso atentado às torres gêmeas em Nova Iorque? É possível. Fato é que, sem relação entre os fatos, foi em 2001 que eu pisei na França pela primeira vez, como estudante em programa de intercâmbio. Assisti ao ataque em um café em Clermont-Ferrand, ainda sem entender bem o francês. Parecia ficção.
Em 2002, a França viveu um grande trauma, que ficou marcado na memória social: o 21 de abril. Naquele dia, saiu o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais. Pela primeira vez na história, um presidente de direita tradicional, Jacques Chirac, ia enfrentar ninguém menos do que Jean Marie Le Pen, o abominável racista, negacionista, ultra-direitista, criador da Frente Nacional (hoje Reunião Nacional, partido da sua filha Marine Le Pen).
Foi um susto. Franceses foram às ruas e a mobilização garantiu a Chirac uma vitória com mais de 80%. O que parecia impensável para as gerações anteriores que viam os racistas supremacistas sempre fora da decisão final nas diversas eleições, aconteceu. Desde então, a extrema-direita vem crescendo e se tornou uma realidade eleitoral no país. Passaram de 0 deputados em 2002 a 123 em 2024, e Marine Le Pen esteve no segundo turno das duas últimas eleições presidenciais.
Pensadores do mundo inteiro tentam desde então entender a ascensão da extrema direita. Explicações credíveis proliferam: como o fim da alternativa socialista, a hegemonia política e os fracassos sociais do neoliberalismo (there is no alternative?), o aumento da xenofobia e da imigração, a despolitização geral provocada pelo avanço da cultura de massa e digital, o conservadorismo fundamentalista religioso.
Mesmo se a extrema-direita não chegou ao poder, governos de direita como de esquerda tradicional criaram restrições para a regularização de imigrantes na França: da circular do ministro socialista Manuel Valls em 2012 à circular do ministro macronista Ratailleau de janeiro de 2025, passando pelas medidas da era Sarkozy, desde 2005, que dificultaram as naturalizações e a regularização dos cônjugues estrangeiros.
Importante notar também que, com Macron no poder, em 2019, os estudantes estrangeiros foram visados, com aumento das taxas das Universidades públicas, embora, ainda por enquanto, muitas instituições não apliquem a medida. Macron, lembremos, ganhou as duas eleições se apresentando como uma barreira à extrema direita, mas diversas ONGs atuais denunciam o endurecimento no tratamento dos imigrantes.
A França não fez no século XXI nenhuma medida de « regularização em massa », como Espanha e Portugal, por exemplo. Verdade que não houve, até recentemente, um problema de declínio populacional, já que o país era, pelo menos até 2017, onde havia maior natalidade na Europa. Em termos migratórios, a escolha dos governos aqui tem sido um tratamento « au cas par cas » (« caso por caso »). Direitos coletivos são, assim, reduzidos na lei e depois transformados em « apreciações de casos individuais ».
Nisso tudo, a extrema-direita segue crescendo, na França, como no Brasil. Ora, o Brasil não é um país com grande tensão imigratória nos dias de hoje. Ou seja, podemos pensar que não é a realidade da imigração que leva à extrema direita, mas claramente uma outra forma de imaginário coletivo, racista por essência, dentre outros fatores citados.
Um estudo publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INSEE) revelou, em 2021, que 7 milhões de franceses são imigrantes (naturalizados franceses ou residentes regulares), ou seja, 10% da população, a maior parte das antigas colônias da África do norte (Argélia, Marrocos e Tunísia) ou da África subsaariana, mas também muitos da Europa do Sul (Portugal sobretudo).
O estudo revela também que a imigração se concentra nos centros urbanos. 20% da população de Paris é estrangeira. No departamento de Seine-Saint-Denis, subúrbio de Paris, onde vivo, trabalho e exerço um mandato como parlamentar desde 2015, 32% da população é imigrante (talvez mais). Há ainda os descendentes de imigrantes, nascidos na França, que não estão contabilizados nesses dados.
Porém, para grande surpresa dos que explicam o aumento da extrema-direita como uma decorrência dos supostos “problemas da imigração”, é justamente nesses territórios onde há maior número de imigrantes onde se vota menos na extrema-direita. Se tomarmos os dados das últimas eleições presidenciais e parlamentares, em Paris, a Reunião Nacional não passa de 10% e não obtém nenhum deputado eleito.
A capital elege 1 parlamentar de direita, 5 macronistas, e 11 da Nova Frente Popular, aliança das esquerdas. Nas presidenciais de 2022, Macron tem 35% dos votos, e Mélenchon, líder da França insubmissa (esquerda radical), obtém 30% no primeiro turno, acentuando a tendência já presente nas eleições de 2017.
Em Seine-Saint-Denis, os resultados são ainda mais categóricos, com 100% dos deputados e deputadas do território eleitos pelas alianças de esquerda em 2022 e 2024. Nas últimas presidenciais, Jean-Luc Mélenchon alcançou 50% dos votos no território, enquanto Marine Le Pen não chegou a 12%.
Inversamente, as regiões francesas onde a extrema-direita tem melhor resultado são territórios de pouca imigração (e também de queda da atividade econômica), como no Norte ou alguns departamentos rurais do centro e ainda na Côte d’Azur, ainda que esses dados possam ser relativizados em alguns lugares, como nos arredores de Marselha, por exemplo.
Historicamente, o voto popular é um voto de esquerda na França, como demonstrou o longo e exaustivo livro Thomas Piketty e Julie Cagé, cobrindo diferentes pleitos eleitorais desde 1789 (“Une histoire du conflit politique”, 2023). A imigração não deve ser responsabilizada pelo aumento do fascismo, ao contrario, ela pode ser uma força de combate, na luta antirracista internacional que já começou, com grande participação das novas gerações. Falta mobilizar 99% da população sobre a verdadeira questão: a concentração de riquezas nas mãos de 1%.
