Sentei no sofá com dois livros, alguns cadernos de cultura e três revistas. A intenção: colocar em dia as leituras atrasadas. Ao escolher o primeiro texto, meus olhos pararam nas letras miúdas no canto superior direito da última edição da revista Amarello.
Tente mover o mundo, mas comece movendo a si mesmo.
Não é à toa que os ensinamentos de um homem pulam séculos e chegam até 2025 sem nenhum arranhão. Pudera, é Platão.
O mito da caverna de Platão atravessa a nossa vida e as nossas relações. A última edição da revista é sobre mitos. E “o mito continua sendo nossa maneira mais íntima de narrar a existência”. Ensina o professor da Universidade de São Paulo (USP), Reginaldo Brandi. Uma conversa, uns dias antes, havia me provocado: a proposta de ter uma coluna no portal Brasil Fora da Caverna, o BFC, ecoava. E digo com espanto: olha onde estou agora.
Palavras
Começo recorrendo a Antonio Bispo dos Santos, um pensador quilombola, no capítulo “Semear palavras”, do livro A terra dá, a terra quer. Ele antecipa uma pista do que deveríamos seguir. “Desenvolvimento” desconecta, diz ele. Vamos trocar por envolvimento. Aceito.
Por que ficaríamos com a versão colonialista e violenta, com conceitos inventados e encarados como nossos? Penso que desenvolvimento sustentável nasceu velho e gasto. Bispo me ajuda: vamos falar de biointeração. Colonização mudaremos para contracolonização para enfraquecer o colonialismo. Saber sintético para saber orgânico.
Para a coincidência, ele sugere confluência. Soaria melhor sincronicidade, arrisco. Assim surgiu o convite – logo aceito – de trazer o COMO (um projeto em gestação) pra cá. Teremos tempo de destrinchar isso.
Vivemos aprisionados na realidade filtrada; Narciso nos devolve a versão idealizada. E o paraíso onde estive era real. Fui para a África do Sul.
Destino
Aqui ou em viagens, aprender é a bússola: aponta o caminho. Desta vez, relaxei (um pouco). Resolvi que falta um quê de transgressão na (minha) vida e aceitei um presente. Local escolhido: África do Sul, com uma natureza que te sacode – somos tão pequenos.
Mito é um dispositivo de saber que traz a memória ancestral dos africanos e seus descendentes… um elo com o sagrado
reflete o doutor em comunicação Rafael de Queiroz.
Não é possível acreditar nas únicas sombras que vemos no fundo da caverna. É preciso sair dela (Platão e BFC, de novo).
Foi assim que escolher um destino internacional – mais ou menos rápido (voos diretos ligam São Paulo a Joanesburgo em oito horas) e mais ou menos baratos (R$ 500,00 ou 100 dólares cerca de 1.613 rands sul-africanos, são suficientes para comprar vinhos locais e fazer boas refeições por dois dias, dependendo das escolhas). Na seleção entrava também o tempo: que o local pudesse ser conhecido em 15 dias, incluindo a viagem. Essas opções fizeram o país entrar no primeiro lugar da (enorme) lista de locais marcados com um “preciso ir”.
Um prato de sopa, um pensamento, uma pessoa
Entrar na vida de Mandela, me enfronhar um pouco mais na história do apartheid – que tentou acabar com um povo e quase conseguiu – além de fazer um safári (ver de perto os big five: búfalo, elefante, leão, leopardo e rinoceronte) e de conhecer os vinhos, eu queria saber de iniciativas locais para diminuir a desigualdade social e combater a fome.
Fui até a Ladles of Love (“concha de amor”) South Africa, iniciativa do empresário e dono de restaurante na Cidade do Cabo, Danny Diliberto. A ideia surgiu no dia em que ele serviu um prato de sopa para uma pessoa em situação de rua. O impacto de quem trabalha com comida e se depara com a fome é grande – o motivou a criar uma cozinha comunitária no centro da cidade, onde estive.
Escondida atrás de um lava rápido, demorei a achar o local; o aroma da lentilha com cenoura e curry na panela me guiou e deu vontade de ficar por ali mais tempo. Não por acaso Bispo dos Santos diz que “o mundo chega pela cozinha”. Conversei com os cozinheiros e vi o brilho no olhar de quem é feliz só por ajudar quem precisa.
Muitos anos depois, a Ladles tem vários projetos. Hoje, apoia 70 centros de desenvolvimento pré-escolar liderados por mulheres, servindo duas refeições para 6.500 crianças. Por meio das Dignity Kitchen fornece refeições para milhares de pessoas. Além disso, o Feed the Soil merece ser copiado: os estabelecimentos pagam pela coleta de resíduos que, transformados em compostagem, são doados a produtores locais, que depois vendem o que plantaram para abastecer as cozinhas da rede.
Jabulani
Mergulhada no safári, abandonei as redes sociais. Zebras parecem pinturas e girafas são elegantes. Elefantes têm olhos tristes. Mas não imaginava ver leões – avistados no “game noturno” – a menos de um metro de distância. Muito menos vê-los em momento íntimo de carinho: um deles lambeu displicentemente a face da leoa (homens) e depois se entregou aos (múltiplos) carinhos dela. Provocou sentimentos adormecidos.
No primeiro dia, ao fazer a “saudação ao sol” (costume dos praticantes de ioga) pertinho de muitos pássaros, alguns macaquinhos pulando nas árvores, uma girafa e um (assustador) búfalo (são ferozes) rondando a sacada, brotou o choro que saiu da barriga, subiu em espiral até a garganta e logo explodiu incontrolável.
Viciada no excesso de informações, fui inundada por uma vivência pessoal real. Não me conformei por não ter conversado mais com Obert Chauke, o mordomo que há 16 anos trabalha na pousada Jabulani. Sua esposa, Ivy Sibuyi, criou o projeto Xilaveko Day Care para cuidar das crianças cujos pais trabalhavam longe de casa. Em 2017, tornou-se uma organização sem fins lucrativos, com a possibilidade de captar recursos.
O próprio Jabulani – nome do bebê elefante de apenas quatro meses, abandonado pela manada (atolado na lama) e resgatado em 1997 – deu origem ao santuário Hoedspruit Elephant Rehabilitation and Development (Herd), criado por Adine Roode, é a prova de resistência.
Jabulani, que inspirou também o nome da pousada, significa alegria ou alegrar-se, em Zulu. Outra lição recebida: o pequeno animal abandonou o medo e deixou-se ser cuidado. O impossível acontece: uma ovelha é adotada como sua mãe. Ele sobrevive e fica tão forte que serve de imã para que a iniciativa de acolhimento cresça.
Em 2002, mais um resgate: elefantes que corriam risco de vida no Zimbábwe. Os donos da pousada ainda mantém outros projetos – uma escola para as crianças locais, e um programa de prevenção e tratamento a pessoas com HIV/AIDS positivo, entre outros. Além disso, trabalham com comunidades próximas e têm programas exclusivos para mulheres.
Realidade
De volta ao Brasil, uns apagões na memória me assustaram. Parecia desconectada e emburrecida. Lúcida e sem palavras, chocada com a relação entre esquecimento e consciência, procurei explicação nos ensinamentos do médico Sérgio Felipe Oliveira.
Seguindo o movimento da vida, ele explica: nosso cérebro diminui com a idade; não precisamos reter tanta coisa mais. As falhas da memória são naturais.
É o metabolismo negativo de nitrogênio. A base da proteína é um aminoácido, e o nitrogênio é eliminado na urina do adulto maduro (espero ter entendido direito a explicação dele). O corpo está se aproximando do fim; se a pessoa se preparou durante a vida, a força magnética que tem – a sabedoria – volta para ela em forma de energia.
Tento entender, sem esquecer a ideia de consultar um neurologista, apoiada na ressalva do próprio médico: “é uma visão parcial dentro de um tema complexo”. Mas acredito que envelhecer é não desistir de se superar.
Imagino que não seja a única a voltar da África do Sul com a cabeça atordoada e a sensação de que faltou abraçar mais e saber mais. Por exemplo, a história de Obert, que se desdobrava no atendimento durante a estadia em Jabulani. Ria quando falava que ia “esquentar a bunda” na lareira, desconfiado de estar dizendo alguma bobagem em português.
A rotina aprisiona
One’s destination is never a place, but a new way of seeing things. O destino de alguém nunca é um lugar, mas uma nova maneira de ver as coisas.
A frase do escritor norte-americano Henry Miller, que escreveu sobre viagens, sexualidade, espiritualidade e busca de sentido, encaixa no texto. Descreve a travessia africana.
Foi ele quem disse que as viagens nos mudam – e a verdadeira viagem é pra dentro. Sigo bem alimentada de desejos de mudanças.
Estamos todos empurrando uma pedra pesada (como Sísifo), tentando vencer problemas – a desigualdade, entre eles. Sozinho é mais difícil. Li, nem lembro onde, a frase de Rumi, o místico e teólogo persa, um dos maiores poetas espirituais: “quando você começa a caminhar o caminho aparece”.
E daí lembrei do poema do espanhol Antonio Machado, sobre a reflexão da passagem do tempo – “a viagem da vida”:
Caminhante, são teus passos o caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar…
