Clemente Ganz Lúcio
A formação social e histórica brasileira é caracterizada por um modelo de concentração estrutural de poder e exclusão. Desde a colonização, a exploração baseada na escravidão consolidou um padrão de desenvolvimento que perpetua desigualdades profundas de renda, educação, saúde, acesso à terra e ao emprego. Mesmo após a abolição, a ausência de políticas reparatórias e a manutenção de privilégios sociais reforçaram as disparidades que se produzem na esfera econômica e produtiva.
As desigualdades no Brasil são, portanto, históricas e estruturais. Elas perpassam a vida em sociedade em todas as suas dimensões, afetando e impedindo o exercício pleno da cidadania e da democracia.
Foi a partir do entendimento de que é urgente transformar o combate às desigualdades em prioridade, que dezenas de organizações da sociedade civil brasileiras se articularam em torno do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades, que reúne organizações sociais, centrais sindicais, entidades de classe, associações de municípios entre outros.
Por meio do Observatório Brasileiro das Desigualdades, o Pacto realiza o monitoramento de diferentes dimensões da desigualdade no Brasil para interagir com o poder público no reconhecimento dos desafios e das políticas públicas bem-sucedidas de combate às desigualdades, bem como apresenta sugestões de medidas para que municípios, sindicatos e empresas possam atuar no tema.
Recentemente, lançamos o Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades para 2025, que traz informações e dados recentes que apontam avanços significativos na redução das desigualdades. Porém, ao mesmo tempo, evidenciam que as mazelas e iniquidades persistem, mesmo em contextos de crescimento, exigindo ação pública estruturada e duradoura.
O relatório destaca que 25 dos 43 indicadores monitorados apresentaram melhora em 2024, especialmente no mercado de trabalho, renda e segurança alimentar.
Destaques no mundo do trabalho
A situação dos empregos e ocupações foi uma das áreas de maior destaque. O relatório registra que a taxa de desocupação/desemprego caiu para 6,6% em 2024, frente a 7,8% em 2023, com crescimento expressivo do emprego formal em todas as regiões do país. Observou-se também que o rendimento médio do trabalho subiu 2,9%, recuperando parte do poder de compra.
O destaque foi para as mulheres negras, que tiveram aumento de 5,2% nos rendimentos, superando o crescimento observado na média nacional. Contudo, permanecem desigualdades gritantes, pois o rendimento das mulheres negras (R$ 2.008) equivale a apenas 43% do rendimento dos homens não negros (R$ 4.636).
Esse paradoxo mostra que, embora o mercado de trabalho apresente sinais de vitalidade, o enfrentamento das desigualdades raciais e de gênero ainda é central.
Outras dimensões das desigualdades
O Relatório 2025 não se limita a emprego e renda, aborda também as desigualdades em múltiplas dimensões, tais como:
- Na educação, observou-se o aumento das taxas de escolaridade, mas persistem defasagens entre regiões, gênero e raça;
- Na saúde, há melhoria em alguns indicadores, mas disparidades regionais e raciais permanecem significativas;
- Habitação e saneamento trouxeram avanço no acesso à água e esgoto, porém ainda insuficiente nas periferias urbanas e no Norte/Nordeste;
- Em termos de violência, observou-se a queda em homicídios gerais, mas aumento de feminicídios;
- Os indicadores de desigualdade racial registram que a população negra permanece mais vulnerável em termos de renda, educação e segurança pública.
O recorte de gênero merece destaque: o Relatório mostra que as mulheres recebem, em média, apenas 73% do rendimento dos homens, mesmo com níveis mais elevados de escolaridade. Além da desigualdade salarial, há outros aspectos, como:
- Carga de trabalho doméstico: as mulheres dedicam quase o dobro do tempo que os homens;
- Violência de gênero: o crescimento dos feminicídios (1.492 casos em 2024, contra 1.350 em 2020) expõe a persistência dessa mazela nas relações sociais;
- Maternidade precoce: mais frequente entre mulheres negras, perpetuando o ciclo de exclusão entre às jovens.
Esses, e outros indicadores, apontam que a redução das desigualdades de gênero depende não apenas de políticas econômicas, mas também de transformações culturais, educacionais e institucionais.
O Brasil saiu do Mapa da Fome
Um dos resultados mais relevantes do período foi a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU. Essa conquista foi possível graças à combinação de políticas de transferência de renda (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada), a política de valorização do salário mínimo, o apoio à agricultura familiar e às políticas de fortalecimento da rede de segurança alimentar e nutricional.
Embora persistam bolsões de insegurança alimentar, sobretudo no Norte (17,4% da população em insegurança grave), o país conseguiu reverter um cenário dramático regressivo vivido no governo anterior.
O papel essencial das políticas públicas e do Estado
Os avanços registrados têm uma explicação clara: foram sustentados por políticas públicas e pelo fortalecimento do papel do Estado. Além dos exemplos já citados, o Relatório destaca a expansão educacional via universidades e institutos federais; as políticas ambientais, que reduziram o desmatamento em 41,3% entre 2022 e 2024; o SUS – Sistema Único da Saúde, que garantiu acesso universal à saúde, mesmo em tempos de restrição fiscal.
Essas políticas demonstram que o Estado é insubstituível na tarefa de corrigir desigualdades estruturais.
O papel essencial do crescimento econômico
O relatório reforça a dinâmica virtuosa da relação entre crescimento econômico e redistribuição do produto do trabalho de todos. O dinamismo da economia cria empregos, amplia a massa salarial e gera receitas para financiar políticas publicas.
Contudo, não basta crescer, é preciso crescer com qualidade e sustentabilidade. Isso significa incrementar a produtividade, aumentar a capacidade de agregar valor às exportações e à produção nacional, gerar empregos de qualidade, orientar a economia para a transição verde, reduzindo emissões e avançando em direção a uma economia de baixo carbono.
Dois grandes vetores de transformações globais se destacam como graves riscos ou grandes oportunidades: a revolução tecnológica e a crise climática.
Inovação tecnológica, digitalização e automação aumentam a produtividade, mas podem ampliar exclusões se não houver políticas de formação profissional e políticas de proteção social.
Diante da emergência climática, as populações mais pobres sofrem os maiores impactos de secas, enchentes e desastres ambientais, mas também são as que mais podem se beneficiar de uma transição justa para empregos verdes e energias renováveis.
Se enfrentados de forma estratégica, esses desafios podem ser motores de desenvolvimento socioambiental inclusivo.
Conclusão
O Brasil carrega desigualdades históricas e estruturais, mas os dados do Relatório do Observatório 2025 e as análises ali aportadas, mostram que avanços concretos são possíveis quando crescimento econômico e políticas públicas caminham juntos. O país reduziu pobreza, melhorou rendimentos, criou empregos, avançou na igualdade de gênero, saiu do Mapa da Fome e reduziu o desmatamento.
O futuro dependerá de três pilares: Estado com alta capacidade de investimento e políticas públicas estruturadas; crescimento econômico com produtividade, empregos de qualidade e economia de baixo carbono e verde; inovação tecnológica e da transição climática como oportunidades para uma nova economia sustentável e de inclusão.
O combate às desigualdades é, portanto, mais do que uma agenda social: é a condição fundamental para um Brasil democrático, justo e sustentável.
