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Contra a era do “eu”: como o PNCC está tecendo a resistência coletiva da cultura brasileira

PNCC
(Imagem: GovBR/Reprodução)

Vivemos um tempo de conexão solitária. As plataformas digitais, que prometiam o encontro, muitas vezes nos empurram para o palco da performance individual. A lógica da “marca pessoal” e da vida como empreendimento nos transforma em gestores de nós mesmos, fragmentando vínculos e nos fazendo crer que estar conectado é o mesmo que estar em comum. Esse terreno de dispersão é fértil para discursos radicais e simplificadores, que se vendem como contestação enquanto alimentam o cada um por si.

É nesse contexto que o Programa Nacional dos Comitês de Cultura (PNCC) se afirma como contracorrente e abre um debate crucial com a sociedade sobre o futuro da política cultural. Seu alicerce é duplo e complementar: de um lado, a força organizada da sociedade civil, materializada nos Comitês de Cultura — formados por Organizações da Sociedade Civil (OSCs) em parceria; de outro, os Agentes Territoriais de Cultura (ATCs) — pessoas físicas, jovens talentos selecionados por edital e mediados pelos Institutos Federais. O grande desafio e potência do programa está justamente em integrar essas duas forças: conectar a vitalidade e leitura territorial dos ATCs à solidez e capilaridade das redes das OSCs que compõem os Comitês.

O I Encontro Nacional do PNCC, realizado em Brasília entre 16 e 19 de novembro como consequência de todos os encontros regionais, confirmou a potência dessa articulação, mas também evidenciou um limite natural do formato original: a representação por uma única pessoa por organização de cada Comitê, ainda que prática, não consegue trazer toda a riqueza de lideranças e saberes que cada coletivo abriga. Ficou clara a necessidade de, nos próximos ciclos, pensarmos em formatos complementares — encontros setoriais, fóruns temáticos — que devem constar em uma proposta robusta e com recursos previsíveis para o novo ciclo dos Comitês. Essa previsibilidade é fundamental para sedimentar esta fase de implementação e constituir de fato uma política pública. A força de uma rede está na densidade de suas conexões, e aprofundar a participação interna é o próximo salto de qualidade para o PNCC.

Paralelamente, o programa revelou um tesouro: os Agentes Territoriais de Cultura, na sua maioria jovens em formação com enorme sensibilidade para ler seus territórios. Eles são vitalidade pura. No entanto, acende-se um alerta: esse brilho não pode ser capturado pela lógica do “empreendedor de si”. Sua potência se realiza quando conectada às organizações, não apenas aos Comitês existentes, mas como articuladores de novas redes com outras organizações sociais e pontos de cultura potencialmente parceiras do programa. É para isso que o programa deve servir: como um fomentador e articulador de novas redes.

A cobertura colaborativa do encontro, consequência direta do Encontro Nacional de Comunicadores Populares realizado pelo Laboratório de Cultura Digital, foi uma prova concreta. Quase cem comunicadores populares e agentes produziram, juntos, algo que ultrapassou qualquer expectativa individual. Ali, a força não veio da soma de talentos, mas de uma inteligência conjunta — grupos apoiando, criticando e criando como um corpo político único. E esse não foi um caso isolado. Percebemos a articulação de outras redes, como a potente cena do hip hop e outras dezenas de exemplos territoriais. Este é o caminho: o PNCC deve ser uma máquina de fomentar a formação de redes e articular novos coletivos que operem para a garantia do acesso e consolidação das políticas culturais no Brasil. 

O próximo ciclo do programa tem um ponto político-chave: fortalecer as organizações dos Comitês, ampliar sua articulação em rede, garantir direção democrática e criar metodologias para que os agentes atuem como integradores e formadores de novos coletivos em seus territórios, sendo a conexão orgânica entre ATCs e Comitês essencial para isso. A política pública se sustenta quando existe uma infraestrutura social viva, capaz de absorver diversidade e transformar energia em ação organizada. Essa é a relação delicada e potente que o PNCC precisa administrar: ser uma política de Estado, operando com a lógica e os recursos do aparato público, mas cuja legitimidade e efetividade dependem diretamente de se ancorar e fortalecer a infraestrutura social fluída e em constante transformação do campo cultural.

A “guerrilha democrática e cultural”, evocada pelo presidente Lula, não se faz com heróis individuais. Ela é travada e vencida por coletivos fortes, diversos e estratégicos. É nessa chave que o PNCC precisa se afirmar: como política de Estado ancorada na organização social dos territórios, e não como um mosaico de iniciativas isoladas.

Por isso, este texto é um convite. Um convite para que Comitês, agentes, institutos e gestores se somem a oportunidade que temos: consolidar uma infraestrutura democrática de cultura feita de pessoas, redes e processos vivos. O futuro do PNCC depende de nossa capacidade de fortalecer o coletivo — porque, em tempos de tanto estímulo ao isolamento, o coletivo não é uma alternativa. É o único caminho de transformação.

João Paulo Mehl

Atua em cultura digital, sustentabilidade e fomento cultural. Coordena projetos na UFPR, no Soylocoporti, no Terraço Verde e no Propulsão Cultural.

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