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Cecília e as palavras que a força dos vermes corrói

Cecilia Meireles. (Foto: Reprodução)

Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.

O Romanceiro da Inconfidência, da poeta, jornalista, escritora e professora carioca, Cecília Meireles, primeira voz feminina de grande expressão na literatura brasileira, com mais de 50 obras publicadas, foi resgatado nas redes sociais nestes dias de selvageria extremista no Brasil.

O poema Homenagem ao traidor cai como uma luva, vocês sabem para quem. Mas a força dos vermes nem sempre é tão explícita. As vezes se traveste de isenção e equilíbrio centrista. De novo, Cecília. O poema Ou isto ou aquilo é perfeito para emprestar algo de lírico ao vídeo que circulou com o doce espanto do governador Eduardo Leite com a prisão do golpista, miliciano e ex-presidente Bolsonaro.

Leite tem buscado um nicho eleitoral que lhe aconselha posições sempre dúbias em que todas as conjunções adversativas (mas, todavia, entretanto, porém…) são arregimentadas para encobrir sua verdadeira intenção: tornar viável seu nome pretensamente alinhado à moderação. O que ocorre é falta de identidade e cinismo.

Sou a favor da soberania do país e da autonomia das instituições, mas não podemos cercear a liberdade de um ex-presidente, diz Eduardo, o ponderado. De novo, Cecília.

Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda

Acontece que liberdade não se confunde com crime e isso pessoas equipadas com o mínimo de boa intenção conseguem compreender, até mesmo Eduardo, o bom moço. Liberdade não é estratégia que torne justificadas atrocidades e traições. A direita fez da liberdade sua bandeira e do culto ao indivíduo seu motivo. É legítimo, embora seja uma ideia de liberdade negativa, segunda a filosofia política, já que cultiva uma liberdade em que o Estado não impeça de realizar o que se pretende.

A extrema direita, no entanto, subverteu até mesmo essa lógica e passou a elaborar sua propaganda num tipo de liberdade que serve de escudo para o cometimento de todo tipo de abuso e jogo sujo.  E assim vai manipulando palavras, símbolos, sentidos, personagens e acontecimentos históricos.

As redes bolsonaristas são um festival bizarro dessa manipulação, onde o miliciano de tornozeleira é apresentado como Mandela e parlamentares lamentáveis aparecem com fitas adesivas na boca e correntes nas mãos, com clara inspiração na propaganda nazista. 

O jornalismo corporativo, por seu turno, tampouco consegue acessar palavras que de fato caracterizam o golpe em curso. Sabemos que o jornalismo é antes de tudo um método e nele a capacidade de redação é primordial, assim como a seleção e a checagem dos fatos.

Eufemismos não deveriam ser bem-vindos diante da gravidade dos acontecimentos: não se tratou de protesto, nem de obstrução ou tampouco estratégia democrática a invasão das mesas do congresso por seus próprios representantes que mediante chantagem e ameaças tentaram, pela força física, garantir a impunidade de réus de seu interesse em julgamento.

Muito menos é razoável aceitar justificativas que apelam para o senso de democracia, justiça e liberdade quando estamos tratando de um devido processo legal, dentro das normas do estado de direito, com robusta investigação e provas contundentes da participação de altas autoridades em um golpe de Estado que se articulou de fora pra dentro do parlamento e que agora se organiza de dentro pra fora. As palavras precisam ser resgatadas dos vermes.

Os veículos de comunicação que insistem numa vaga acusação de excesso do Ministro Alexandre de Moraes confundem deliberadamente as decisões, como se as medidas tratassem de mera expressão de opiniões em ambiente online orgânico, quando de fato está comprovada uma milionária indústria digital de produção de mentiras e articulação de movimento golpista.

A fraude de um jornalismo que supostamente pratica o equilíbrio ouvindo dois lados, quando um desses lados é criminoso e não se equivale ao outro polo que tem a missão constitucional de defesa democrática, teve seu ápice na cobertura da Globo News que promoveu debates de tempo cronometrado e igualitário entre parlamentares legalistas e os golpistas. Façamos justiça ao editorial do Estadão que chamou o grupo sequestrador pelo nome: uma súcia.

A doutora Camilla Machuy que faz parte da Rede Nacional de Combate à Desinformação teve resultados da sua tese de doutorado divulgados pelo Portal Metrópoles nesta semana. O estudo da pesquisadora da UFRJ feito em conjunto com o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia analisou mais de 500 mil mensagens em 205 grupos públicos na plataforma Telegram, identificando como pessoas de diferentes comunidades se mobilizaram nas redes sociais para apoiar as articulações golpistas nas semanas que antecederam os ataques à Praça dos Três Poderes. E adivinhem quais os achados da pesquisadora?

Entre 30 de outubro de 2022 e 9 de janeiro de 2023, comunidades originalmente focadas em pautas distintas como antivacinas, combate à ideologia de gênero e terraplanismo passaram a se alinhar em apoio a ideais bolsonaristas. Foram bolhas que se fundiram, atuando como células coordenadas, com uso de vocabulário militarizado e instruções práticas, funcionando em modo de câmaras replicadoras dos grupos pró-Bolsonaro. A pesquisa comprova que o Telegram foi usado como uma infraestrutura de ação política. 

Conseguem compreender os motivos de “cerceamento” da voz do líder, nobres jornalistas e digno cavaleiro do bom Senso?

De novo, Cecília.

Todos querem liberdade, mas quem por ela trabalha?

Sandra Bitencourt

Jornalista, doutora, diretora do INP, pesquisadora da UFRGS e coordenadora da Rede Combate à Desinformação. Estuda mídia, política e tragédias climáticas.

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