Nos dias atuais, a alegoria platônica da caverna volta a ser lembrada, em meio a um cenário delirante que impõe discursos de ódio, preconceito, charlatanismo e manipulação. Assim como na célebre metáfora, hoje em dia a projeção enganadora de uma realidade ilusória afasta os indivíduos da consciência de sua condição de cativos e acorrentados, incapazes de dimensionar sequer a hipótese de emancipação.
Os grilhões contemporâneos emanam das redes sociais, massivamente coordenadas pela extrema-direita, em associação com o poder bilionário do oligopólio das empresas de tecnologia. É a antiga exploração do capital, que se reconstitui e oprime as maiorias sociais, subtraindo sem pudor direitos construídos historicamente e eliminando esperanças de superação de brutais desigualdades.
Transpostos para o horizonte político, tais mecanismos de cooptação assumiram protagonismo, convertendo ameaças assustadoras em exercício real de poder, em escala global. A desfaçatez dos abusos praticados pela horda fascista não está mais restrita a esferas nacionais. A internacional extremista, muito bem articulada, se retroalimenta por meio de uma sinistra rede de apoios recíprocos, que transgride as convenções mais elementares das relações diplomáticas. Com o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, foi alcançado o máximo paroxismo, inaugurando um período anárquico de vale-tudo para a desconstrução dos paradigmas civilizatórios que ainda maquiavam a era desumana do neoliberalismo.
Pois nesse contexto de severa degradação das relações internacionais em vários aspectos, simbolizados pelo descarado fomento à cultura da guerra e do genocídio e pela confessada utilização de mecanismos de chantagem econômica a países independentes, a escalada insana de Trump encontrou inadvertidamente um obstáculo imprevisto. Ao acossar covardemente um parceiro comercial de longa data como o Brasil, a Casa Branca parece ter calculado mal os reflexos de sua imprudente subversão dos objetivos de uma disputa comercial.
Em seu gesto, talvez irresistível, de respaldo a uma escória de inimigos do Estado de Direito e da Democracia, interessados em obter indulgência de suas graves culpas, à custa de um atentado à soberania do nosso país, Trump provavelmente estava com os olhos fixados no espelho, pois no Brasil a tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023 teve o mesmo script desenvolvido na Invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. E assim, mais uma vez, o autocrata estadunidense cedeu ao seu habitual impulso selvagem, pouco importando a manifesta incoerência desta atitude sob o ponto de vista das balizas do comércio exterior. Donald Trump nem se preocupou em disfarçar a politização escancarada das sanções aplicadas ao Brasil, tampouco deu a mínima para a ética deformada daqueles que, mesmo sendo brasileiros, traiçoeiramente maquinaram e fomentaram tais punições.
O que decerto o presidente dos EUA não esperava, tal qual na referência filosófica ao mito da caverna, era a eclosão de uma resistência desconcertante e eficaz, desencadeada pelo Brasil e encarnada pelo seu veterano presidente da República, que ao se valer de construções lógicas bastante certeiras para justificar singelamente a impossibilidade de reverência diante de tal ato de sordidez, empreendeu o rompimento das amarras violentas que nestes tempos subjugam tantos países mundo afora. Lula encarregou-se de libertar o Brasil da caverna opressora do extremismo trumpista. Trouxe para um espaço iluminado e amplo a disputa que se compelia restrita a um circuito intransitivo e sombrio. Explicou corajosamente que, se houvesse praticado no Brasil as condutas golpistas de estímulo à invasão do Capitólio, Trump provavelmente estaria aqui sendo processado e responsabilizado. Por isso, aconteça o que acontecer, a exemplo da epifania institucional que ajudou a provocar como líder sindical, no final dos anos 70 do século passado, um redivivo Lula foi capaz de colocar em xeque a inevitabilidade da submissão à tirania comercial imposta por Trump, cujo olhar penetrante, quem sabe, agora passa a hesitar diante do espelho.