Aconteceu com o amigo de um amigo meu, homem desses da vida, sozinho e muito solitário, orgulhoso que só, juro por Deus. O cabra estava andando pelas ruas sebosas do centro, o cheiro da urina ainda nas calçadas e o petit pavê desprendido virando os pés, quando sentiu o frio anunciado desde a manhã chegando pelo canto das mãos. Pleno outubro.
Desarmado e sem o quê, entrou em um brechó da Santos Andrade, um dos bem ajeitadinhos até, com as roupas limpas e higienizadas, ainda que o cheiro de usado permanecesse agarrado no ar, teimoso. Pagou quinze em uma jaqueta azul marinho sem rasgos ou furos. Recuperava na sinuca.
Tinha só uma mancha branca na manga que explicava o preço, mas passava sem maiores problemas, o mais importante era fazer bem o trabalho e aguentar o frio e isso ela fazia bem, tinha o tamanho certo e era até bonita de um ângulo ou outro.
Recebeu elogios no bar, jaqueta nova, Fernandinho, e meus deizão nada filho da mãe, essas coisas que os bares dizem. Jogou e bebeu até a espelunca fechar, perdeu mais do que ganhou, amanhã vai ser melhor. Já em casa, pendurou a roupa nova no cabide, fez o que tinha para fazer, se limpou e deitou para dormir. Foi quando o antigo dono apareceu.
Estava na porta, em pé, cara de quem comeu e não gostou ou morreu e não gostou. Não se assustou: já tinha visto espírito antes, até entidade. Uma vez consultou o Zé Pilintra, mas não voltou porque o Zé mandou que parasse de beber. “Deixo o primeiro gole para o senhor toda vez e agora quer que eu pare de beber, pois pare o senhor!” — pensou, não disse, teve medo. Garantiu que ia parar logo, mas não prometeu data, isso não.
Aquele ali não era espírito qualquer, nem entidade, era proprietário buscando retomada de posse. Disse que queria a jaqueta de volta.
Se ajeitou na cama para responder. “E vai querer de volta por quê?”. Não estava bom para brincadeira de espírito. “Não tem mais corpo para usar, vai cair no chão, blusa boa dessa arrastando por aí”.
“Não importa. É minha, coisa que é nossa, é nossa, não tem conversa”.
Reapropriação do além, era o que faltava.
O morto disse que já tinha recuperado duas calças, uma blusa de lã e um cachecol, agora queria a jaqueta para completar a roupa.
“E se eu não devolver? Paguei, está ali a nota em cima do móvel. É minha também”.
O espírito esticou o pescoço muito do espirituoso e deu uma espiada. “Quinze? Eu paguei muito mais, foi cento e cinquenta e tantos”.
“Pagou porque quis. Além do mais paguei o preço de usada, você de nova, ninguém mandou usar, quem diminuiu o valor foi seu corpo, abençoado seja”.
“Mas não usei tanto assim, morri logo. Com ela, até. Acho que deu azar. Caí duro com a mão no peito, lembro bem. Vá, me pague ao menos a diferença”.
Aí é demais. “Pois vai usar o dinheiro como, companheiro? Tem mercado no além?”.
“Passe para a conta da minha mãe. Ela bem está precisando”.
“Nem a pau”.
“A pau, sim. Se não devolver vou lhe assombrar”.
“Pois assombre, não tenho medo”.
Resultado: a semana toda assombrado. Para onde ia o espírito ia junto, andando lado a lado como a boa assombração que era. No trabalho, na casa da mãe, na sinuca, até no puteiro, durante o ato, lá estava o outro. “Sai assombração, que agora estou ocupado”. Não adiantava. Trabalhava com o outro no cangote, jogava a sinuca distraído pelo defunto, não conseguia desempenhar com o ex-homem observando. No sábado desistiu.
“Mando o mesmo valor que paguei para a sua mãe, coitada não teve culpa de ter filho teimoso desse jeito, apegado aos bens materiais mesmo depois de morto”.
“Mande cinquenta, quinze não compra nem um pacote de arroz”.
Foi assim. Mandou o dinheiro e não viu mais o sujeito. Deu por falta da companhia, até. Não usou mais a blusa também. Disse para quem perguntava da jaqueta bonita que perdera ou manchara ou dera para um amigo que estava precisando, já está calor, quero blusa pra quê? Deixou dentro do armário, longe da vista.
Precaveu-se como quem só tira o cinto de segurança depois da última curva com medo de aparecer no jornal como o protagonista triste e trágico da história de quem estava protegido antes do acidente mas baixou a guarda antes da hora. Melhor não usar roupa dos outros, ainda mais roupa que morreu com o dono, Deus o livre e guarde da propriedade alheia.
