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As descobertas que humanizam

(Imagem: Reprodução)

Tento peneirar assuntos e ver qual cai para desenrolar o texto. Lembro que não acabei a coluna sobre o Mesa Tendências. Lembro que ainda não escrevi sobre o Quintonil, o incrível restaurante na Cidade do México. Parecem que podem esperar um pouco.

Quero novos caminhos sempre. Saío para ver o que a inspiradora 2ª Casa Literária – Festival de Literatura de Curitiba, na Casa de Pedra, tinha pra me dizer. Quando tem as mãos (cabeça, corpo inteiro) do Thiago Tizzot e da Julie Fank, responsáveis pela curadoria, não dá pra desprezar o convite. Nex House e Arte & Letra organizaram.

Ando pelo jardim, encontro amigas embaixo das árvores, balanço o corpo discretamente ao som da música ao vivo e folheio livros. Desafio o calor e tomo um café. O ar fresco dentro da casa chama a entrar. Há mais expositores por ali. Não dou conta de ver tudo e sigo para a sala de palestras em busca de uma cadeira confortável. Gosto do silêncio instalado. No painel, a apresentação de dois livros para logo mais. Ainda havia tempo. Me distraio com a chegada de uma amiga.

As bifurcações da vida vão me levando e, sem querer, me perco. Algumas me puxam com força. Sou atraída para um sofá verde-bandeira de veludo, em forma de uma vírgula, no fundo da sala. Almofadas redondas sobre ele pareciam pontos finais. Não eram. Abriram várias portas. 

Por acaso, na sala ainda vazia, Andresa Pereira Serpejante também é atraída pelo sofá, senta-se ao meu lado. Eu não sabia que ela falaria sobre a tese que virou o livro “Africanas e afrodescendentes em Curitiba”. Mais tarde, como Alice no País das Maravilhas, eu despencaria em um novo horizonte.

Hermelindo Silvano Chico, angolano, era o outro palestrante. Falou de uma África anterior à colonização, organizada em aldeias e vínculos comunitários, e de como essas estruturas foram atravessadas pelo choque do encontro com o europeu.

No conto “Os três ventos de Kimbala”, de seu livro, aparecem os agentes do pesadelo colonial: missionários, militares e mercadores. Sopram promessas, medos, lucros. Uma reordenação forçada do mundo existente, numa tentativa de quebrar o que antes era coletivo, os nomes, por exemplo, que para os povos africanos carregam significados ligados a fenômenos, fatos ou memórias.

A igreja

Andresa pega um cartão-postal de Curitiba – a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e dos pretos de São Benedito (1764), atual Igreja do Rosário – e escava a história da sua demolição em nome da modernidade.

É evidente a necessidade de apagar a memória. E a minha memória apagada da infância e da juventude parece reacender. Sei que minha mãe frequentava aquela igreja. Andresa não falou apenas sobre a demolição; falou de um método de silenciamento.

As irmandades do Rosário e de São Benedito não eram exclusivamente religiosas: eram uma maneira de sobreviver, de acolher, de garantir um sepultamento digno, de existir em comunidade. A nova igreja, reinaugurada em 1946, ressurgiu já divorciada da tradição que a havia criado. Aconteceu aqui, no nosso quintal.

Destino

Tento entender o que uma recente viagem à África do Sul tem a ver com o início desses desdobramentos. Por que escolhi esse destino? Por que escolhi ler “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves? Por que paro naquela sala e escuto aqueles dois autores? Deixo-me guiar. 

Chico fala de uma narrativa que valoriza apenas a contribuição dos imigrantes que chegaram no final do século XIX, a chamada segunda leva migratória. Indígenas e pretos são esquecidos. Essa visão racista da superioridade branca permanece forte. O projeto colonial cria um “eu” supostamente separado, autorizado a explorar o outro. 

Ele conta que sua tese foi sobre a filosofia Ubuntu: “Eu sou porque nós somos”, uma forma de compreender a coletividade e o ser humano de modo mais integral, em equilíbrio com a natureza. Diz que tentou tirar a pesquisa do palavrório acadêmico e devolvê-la em forma de história, para que o conhecimento voltasse a circular onde nasceu. Agradeço.

Identidade

Quando vejo o movimento de construção da identidade da gastronomia paranaense a partir dos tropeiros, sinto a necessidade de reparação histórica. É preciso reconhecer a presença indígena e preta na formação do Brasil e da América Latina, eles vieram antes. Os pratos são como um arquivo assentado em camadas de história e de resistência que não podemos ignorar. 

Assim como a arquitetura e o turismo de vinho camuflam o nascimento do regime do Apartheid em Stellenbosch (tema da última coluna), a reconfiguração da igreja (demolição, nova fachada, uso para casamentos) camufla a origem preta do lugar.

A partir de 2009, o movimento de retomada da história começa com a lavagem das escadarias em Curitiba, à semelhança da Igreja do Bonfim, em Salvador. Além de celebrar a Consciência Negra, a Festa do Rosário homenageia São Benedito, padroeiro dos pretos brasileiros. 

Nomes

Nomes africanos carregam histórias de resistência, dor e força. Mudar o nome, demolir o templo, reconstruir sem referência às irmandades pretas, é uma forma de renomear o espaço e apagar seu sentido original.

Na plateia, alguém lembrou que reparação também mora nos nomes: em pontes, parques, praças. É aquilo que a cidade escolhe celebrar. “Nomear é dizer quem existe. E também quem pode ser esquecido”. Por que não homenagear os pretos? O Centro Cultural Humaitá trabalha para retomar essa memória apagada, um modo de dizer que estamos aqui, num lugar que a cidade quis tornar neutro. Saio decidida a conhecer mais sobre a instituição. Isso vai levar tempo. 

Dança

A devoção a Nossa Senhora do Rosário é muito forte, principalmente entre a comunidade preta no Brasil. Nas festas a ela dedicadas, a dança é destaque e me faz lembrar que chegamos à terceira edição do projeto Juro que danço. Concorremos com confraternizações e festas de final de ano. Mesmo assim, a julgar pelos sorrisos, contentamento estampado nos rostos e declarações, foi um sucesso.

Talvez porque dançar também seja uma forma de memória coletiva. Na pista de dança, somos iguais. A ideia inusitada que vi em Berlim de dançar na hora do almoço durante a semana, já foi abraçada por muita gente. 

Encerro o ano pensando em histórias que precisam ser contadas. Que bom ter estreado aqui no BFC escrevendo sobre tudo isso. Muitas ideias e páginas me acompanham. Todas as noites preciso saber o que aconteceu com Kehinde (pronuncia-se Quéindé).

A personagem de Ana Maria Gonçalves em um dos romances mais longos da literatura brasileira sobre a escravidão (mais de 900 páginas) nos faz entender o que significa ser preto. Eleita por 169 intelectuais, por meio de uma enquete realizada pela Folha de S. Paulo, a obra está entre os 200 livros fundamentais para a compreensão do país.

Cada atrocidade que a escravizada sofre me atinge também. Impossível não chorar, impossível não se indignar. Cada passo de dança me lembra que no Juro que danço, a intenção é oferecer o afeto da alegria para gerar amor ao próximo, àquele que precisa de uma oportunidade para uma vida mais digna. 

A ideia de construir uma memória coletiva, com dança e pertencimento faz parte do sonho de reativar a Gastromotiva em Curitiba. A ONG, criada pelo curitibano David Hertz, educa e inclui pela gastronomia há 20 anos. Não sei onde essa estrada sinuosa e cheia de obstáculos vai nos levar. 

Todo fim de ano, um estranho estado de melancolia me alcança; torço para que “as festas” passem logo. Coisas de mil anos atrás voltam. O que não muda entristece. Recolho-me. Depois passa. Eu me recupero. Sigo para 2026 com sonhos embaixo do braço.

Enquanto os leões não contarem sua própria história, prevalecerá a versão dos caçadores

Provérbio africano.

O Centro Cultural Humaitá é uma instituição associada à promoção de obras que valorizam a história e cultura afro-paranaense. 

Jussara Voss

Jornalista, escritora e agitadora cultural. Ativista da gastronomia social, defendendo comida de qualidade e acessível para todas as pessoas.

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