Se aos dezessete anos de idade, quando recém havia entrado na faculdade de direito, eu tivesse sido convencido de que justiça não se resumia à lei e que os sonhos de um mundo romanticamente justo era utopia, mas que ainda assim tínhamos o dever de luar por ela, talvez eu tivesse mudado de curso, fosse estudar medicina, psicologia, quiçá matemática – eu era excelente em cálculos.
Foi assim, não convencido do contrário, que segui na busca da justiça.
Logo depois de graduado, ingressei na magistratura, aos 24 anos, e então já não sabia exatamente o que era justiça, ou melhor, achava que sabia, mas tinha dúvidas. O conhecimento técnico que me amparava e que me fazia atuar com presteza na interpretação da lei e, como chamamos no direito, na subsunção do fato à norma, fazia-me crer que contribuía para sedimentar a tal da justiça.
Depois, quando passei a exercer as funções exclusivas de juiz criminal, percebi que não era bem assim, que as leis, feitas por homens, nem sempre resultavam em algo justo, havia muita desigualdade no exercício do direito, limitação na ampla defesa, afronta aos princípios constitucionais. Finalmente, já juiz da execução penal, confirmei o que vinha perscrutando: o sistema de justiça criminal, sob o beneplácito da sociedade, é feito para neutralizar e eliminar jovens periféricos, em sua maioria, jovens negros.
Meu proceder então passou a ser na totalidade filtrado pelos direitos e garantias fundamentais, aí incluídos os pactos e tratados internacionais e precedentes das cortes superiores. Mais! Como cidadão, comecei a praticar, por meio da comunicação não violenta, um ativismo constitucional, ou seja, ocupei espaços em coletivos, em associações e organizações não governamentais, em universidades, em movimentos democráticos, para denunciar a crueldade do sistema, ressonando as dores daqueles que gritam e não são ouvidos.
Uma vez que vi, nunca mais deixei de enxergar e não pude mais me calar perante a extrema injustiça que cerca toda a estrutura estatal. Mas não foi só e aqui adentro no tema proposto no título deste artigo: a homofobia.
Se o sistema de justiça criminal, sustentado por uma sociedade machista, racista e colonialista, é feito para neutralizar e eliminar jovens periféricos, em sua maioria, jovens negros, é certo que a comunidade LGBT+ sofre dessa neutralização e eliminação, por todo o sistema, não só o criminal.
Ainda não sou letrado nessas plagas, estou aprendendo, meu conhecimento sobre o ativismo ainda é superficial. Como um visitante, estou entendendo as cenas que se desenvolvem ao meu redor, muito embora bastante do que veja me pareça espelho. Volta e meia preciso me socorrer a queridas pessoas que me instruem, que me mostram o quanto já se caminhou e o quanto de trincheiras foram vencidas. Também procuro ler sobre o direito voltado ao assunto, consultando autores como Renan Quinalha e Paulo Iotti, referências nacionais.
O fato é que ainda vivemos sob o império truculento e recalcado do preconceito, onde a regra criada para controle de mentes, com toques falsamente pintados de religiosos (Deus sequestrado acima de todos), estabelece que não há espaço para se viver na sua essência. A ordem, como Procusto da mitologia grega estabeleceu, é de se adequar, do contrário, pernas são cortadas ou corpos esticados, o que importa é o tamanho da cama e não o ser humano que a ocupa.
Mensageiros de falsa moral e questionáveis costumes, os “cidadãos de bem” que sonegam impostos, lavam dinheiro em apartamentos luxuosos à beira mar, traem seus cônjuges, violentam a dignidade da pessoa, esses mensageiros pregam aos gritos que o amor – como se soubessem o que é o amor! – só pode existir, no que conceituam obtusamente, entre um homem e uma mulher.
Não sabem eles, negam-se a saber, por medo ou recalque, que no atual padrão de civilidade, constitui-se como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, IV da CF). Ignoram esses falsos promotores do bem, que todos são iguais perante a lei (5º, caput, da CF) e que a discriminação, inclusive a que se refira à orientação sexual, é objeto de combate e responsabilização por parte de quem a pratica (Lei n.7.716/89 – Lei do Racismo aplicável à homofobia e transfobia, por decisão do STF – ADO 26 e MI 4733).
Eu ocupo um cargo de poder, sou desembargador e acho que a esta altura já tenho uma breve noção do que é justiça. Certamente, na jurisdição sigo regras, utilizando-me da hermenêutica. Mesmo que as vivências passadas, que me constituem, reflitam nas decisões, os parâmetros das normas constitucionais e legais são as barreiras para que minhas vontades individuais não se sobreponham à lei e à Constituição. Nada disso, porém, impede-me de me expressar em vários ambientes e de atuar no enfrentamento da intolerância, na defesa da justiça.
Por isso, quando alguém pratica homofobia contra a minha pessoa, como há pouco tempo aconteceu em rede social, para dar exemplo e para fazer por aqueles que não podem, levanto a cabeça e com a espinha ereta enfrento esse ato criminoso. Como se diz no ditado popular, levo o caso às barras da justiça.
A luta pelo respeito aos direitos humanos, seja frente ao sistema prisional, por onde tanto andei, ou frente à comunidade LGBT+, cuja caminhada inicio, vai além de mim, ela me transcende. Assim como tenho certeza de que as pessoas alcançadas pela necropolítica e que são lançadas em um sistema prisional odiosamente violento, veem em mim alguém que luta para que esse estado de coisas inconstitucional acabe, também tenho certeza que para muitos que como eu são LGBT+, mas que não estão em condições de lutar pelo respeito aos seus direitos, a atitude de enfrentar quem dissemina o ódio serve de alento e força.
Neste aspecto, além de ter a sorte de contar com um companheiro que me abraça e comigo anda, tenho recebido muito apoio, assim como encontrado inúmeras pessoas que afirmam ser representadas por mim, até novos magistrados.
Se o ser humano está sozinho no universo e a ideia de conexão é que o sustenta (Camus), então, quando essa ideia se realiza, a plenitude se concretiza. Neste meu texto, misturado e imbricado, eu sei, muitos outros me identificarão e se identificarão. Então nos conectamos e na plenitude nos concretizamos. Talvez isso nos leve mais próximos do que seja justiça.