Tarde de um domingo chuvoso em Porto Alegre. Meu marido, Tarso Genro, tenta postar um comentário no seu perfil no Twitter sobre as investidas autoritárias de Trump no sistema jurídico brasileiro. Não consegue e logicamente desconfia das próprias habilidades tecnológicas. Pede ajuda à autoridade digital da casa, eu, no caso. Mas não se tratava de minha maior destreza online. Não havia nada de errado no procedimento. Fizemos várias tentativas e retirando a palavra Trump, a postagem se completou na hora.
E então percebemos um paradoxo que desafia construir um regramento que consiga superar a encruzilhada em que estamos metidos: temos menos transparência, somos dependentes de plataformas cuja meia dúzia de proprietários bilionários define o que será visto no mundo, requeremos que as capacidades tecnológicas filtrem e controlem conteúdos criminoso e extremista, mas ao mesmo tempo padecemos de censura e manipulação. O que fazer nesse caos onde a liberdade de expressão é acionada com os mais distintos propósitos e interpretações?
Recentemente, assistimos uma espécie de cerco a personalidades progressistas em diversas plataformas. O Spotify vem sendo denunciado por retirar episódios de podcasts da plataforma sem dar explicações, como os programas o Joio e o Trigo e o Xadrez Verbal. No Instagram, a conta do escritor Jeferson Tenório, com mais de 30 mil seguidores, foi bloqueada sem nenhuma explicação e sem possibilidade de recuperação. Ele precisou abrir novo perfil e atribui o bloqueio a um artigo crítico ao presidente Norte americano.
Já o historiador Jones Manoel teve seus perfis excluídos no Instagram e no Facebook, A alegação da Meta foi que desabilitou as contas por não seguirem os padrões da comunidade. Jones Manoel entende que a punição tem motivações políticas e recebeu prazo de 180 dias para apelar da decisão. O perfil de Manuela d’Ávila também sofreu restrições após publicação em que relacionou Bolsonaro e a direita à adultização de menores nas redes sociais
Enquanto se multiplicam punições duvidosas e claramente vinculadas a posições ideológicas e políticas, com todo cheiro e gosto de censura, crimes e absurdos seguem fortes nas redes e para eles vale o salvo conduto da liberdade de expressão. Tem inclusive rede nova que se fortalece justamente por permitir o bizarro. A Kick, por exemplo, é uma plataforma que permite que criadores de conteúdo façam transmissões ao vivo, as lives, com foco em jogos. Ela foi criada em 2022 e atualmente tem mais de 50 milhões de usuários. Nessa rede foi transmitida ao vivo na França a morte de um influenciador.
Já a Meta também voltou ao centro de uma polêmica, depois de denúncias de que seu chatbot era autorizado a manter interações românticas com os usuários, até mesmo com menores de idade. O tema veio à tona depois de um idoso ter sido enganado pela IA da empresa e convencido a viajar para encontrar a suposta “pessoa” com quem conversava, ele acabou tendo um desfecho trágico. Os chatbots são softwares baseados em inteligência artificial capazes de simular conversas em tempo real, tanto por texto quanto por voz. É apenas uma das aplicações de IA nesse ambiente que nos revela uma capacidade ilimitada de distorção e controle.
Executivos das big techs e parasitas da extrema direita discursam como se a regulação das plataformas colocasse em risco as liberdades de expressão e de imprensa. Na verdade, hoje os donos da expressão, livres para definir conforme sua conveniência quem silenciar e o que monetizar, são os únicos a ter liberdade irrestrita numa vitrine cujas chaves lhes pertencem. Alegam não poder controlar e não querem se responsabilizar com conteúdos criminosos, mas utilizam essa capacidade de controle para silenciar vozes ou propagar seus próprios pontos de vista e interesses. E tudo piora com o avanço da Inteligência Artificial.
O uso de IA no upload de arquivos para a web, a fim de supostamente proteger os direitos de propriedade intelectual de vídeos, tem promovido grande número de bloqueios, mas sem justificativas claras e critérios definidos. A potencial filtragem de conteúdo vinculado ao terrorismo ou outras posições extremistas, pode, na verdade, ter o efeito oposto se não houver instrumentos jurídicos e esclarecimentos na opinião pública. Ao invés de proteger direitos, regimes totalitários podem ser estabelecidos ou potências podem turbinar seu poder por meio da aplicação de censura prévia automatizada.
Esse paradoxo está revelando como a discussão sobre Liberdade de Expressão tornou-se chave e precisa ser disputada. Comunicado de 2018 da ONU aponta que de fato, embora o uso de algoritmos de comparação criptográfica para detectar imagens de abuso sexual infantil seja extremamente útil, sua aplicação a conteúdo “extremista” — que geralmente requer uma avaliação do contexto — é difícil sem padrões claros que definam o que é “extremismo”.
É evidente que a liberdade de pensamento e de expressão humana é a base fundamental de qualquer sociedade democrática. Isso é reconhecido pelo Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como pelo Artigo 18 (liberdade de pensamento) e pelo Artigo 19, parágrafos 1 e 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que preveem que “ninguém será perturbado por causa de suas opiniões” e que todos gozam do direito de “buscar, receber e transmitir informações e ideias de toda natureza”, independentemente de fronteiras ou “processo” de sua escolha (ONU, 1966).
No entanto, não se trata de direito absoluto. Ao mesmo tempo, esse mesmo artigo reconhece que esse direito pode estar sujeito a restrições que devem ser estabelecidas por lei, necessárias para: a) assegurar o respeito aos direitos ou à reputação de terceiros; e b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde ou da moral públicas.
É uma abordagem complexa e que foi simplificada e manipulada de tal forma que passou a ser utilizada para defender toda sorte de abusos, de um radialista do interior do país, ao presidente de uma grande nação que impõe sanções e tarifas ao resto do mundo.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos também consagra esse direito. Mas talvez a chave para disputar e colocar nos trilhos é abordar como um direito coletivo e a consciência de que quem o exerce está sujeito a responsabilidades subsequentes, que devem ser estabelecidas em lei, respeitadas sua necessidade, legitimidade e proporcionalidade.
É evidente que os limites e o alcance do exercício desse direito são foco de análise e interpretação complementar por parte dos principais organismos internacionais e nós como sociedade precisamos elevar a liberdade de expressão em seu aspecto coletivo, buscando garantir o debate público, as oportunidades de expressão para os diversos setores da sociedade, para que todas as pessoas possam colocar suas ideias e opiniões dentro de um princípio de bem comum e respeito aos mais frágeis, à saúde pública, à garantia de proteção à infância e outros parâmetros. Para isso, a presença humana é fundamental no discernimento e só a IA não conseguirá resolver.
Os padrões intercontinentais acordados ao longo da maior parte do século XX e início do século XXI estão sob desmanche e ameaça. O surgimento das mídias sociais e de outros intermediários online permite que praticamente metade da população mundial se dedique à tripla ação de produzir, pesquisar e disseminar informações pela internet, por meio das principais plataformas que utilizam “Inteligência Artificial” com as quais interagimos diariamente. Não é razoável que cada um faça o que der na telha e ainda monetize isso.
A Inteligência Artificial pode ser apresentada como uma aliada na moderação de conteúdo violento ou aparentemente jornalístico, mas seu uso sem intervenção humana para contextualizar e traduzir adequadamente a expressão deixa em aberto o risco de censura prévia e a manipulação.
Diferentemente das pessoas, os algoritmos carecem de corpos e de mente. Não são capazes de entender quando uma expressão é irônica ou uma paródia, nem de confirmar com precisão se determinada manifestação pode ser classificada como elogio ao “terrorismo”. São programados, portanto, pelas plataformas de acordo com diretrizes e interesses não partilhados.
A automatização de sua operação matemática tende a optar por um resultado rápido, que consiste em limitar ou remover determinada expressão. Mas o que está por trás da decisão precisa ser transparente, descrito e justificado.
Isso está atualmente em debate internacional. Por aqui, obtivemos alguns avanços na regulação. Mas não vamos conseguir avançar como nação sozinhos. Isso requer integração. Os Estados soberanos precisariam alinhar suas legislações internas aos padrões internacionais de liberdade de expressão e desenvolver políticas públicas que implementem leis que protejam as condições de trabalho de supervisores humanos em relação às decisões automatizadas de remoção de conteúdo.
Precisamos exigir que as plataformas de mídia social apresentem termos e condições claros e consistentes, adotem políticas internas de transparência e responsabilização e conduzam avaliações prévias do impacto de sua IA nos direitos humanos. É uma luta difícil e desigual, mas precisamos fazê-la. Esta, aliás, talvez seja a maior das lutas do nosso tempo.