Uma aliança entre deputados da direita e da extrema-direita, em sintonia com o lobby de plataformas como iFood e Uber, está impondo retrocessos em Brasília e ameaça sepultar a principal resposta legislativa às mobilizações dos trabalhadores por aplicativos: o PL dos Breques.
Apresentado em resposta às paralisações de 30 de abril e 1º de maio de 2025, o projeto buscava garantir renda mínima, seguro obrigatório e transparência nos algoritmos, mas enfrenta agora um movimento político que tenta neutralizá-lo e consolidar um trabalho autônomo, sem direitos, como modelo oficial no Brasil.
Do Breque dos Apps ao PL dos Breques
Em julho de 2020, motoristas e entregadores de aplicativos realizaram o primeiro Breque dos Apps, a maior paralisação nacional da categoria até então, com reivindicações por remuneração justa, transparência e proteção social. Cinco anos depois, a insatisfação voltou às ruas com ainda mais força: o Breque dos Breques mobilizou trabalhadores em todo o país, exigindo sobretudo a criação de uma renda mínima garantida.
Dessa mobilização emergiu o PL 2479/2025, apresentado pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) e apelidado de PL dos Breques, fruto de diálogo direto com o coletivo das lideranças de entregadores e mototaxistas. O texto estabelece valor mínimo por entrega, seguro obrigatório e transparência nos algoritmos — medidas mínimas e emergenciais para enfrentar a vulnerabilidade extrema vivida pelos trabalhadores.
O setor de aplicativos de transporte e entrega cresceu de forma vertiginosa. Segundo pesquisa da Clínica de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (CDT-UFPR), mais de 2,3 milhões de pessoas atuam nessas atividades no Brasil. Esse contingente movimenta bilhões de reais na economia digital, mas permanece majoritariamente sem vínculo empregatício, sem proteção social e submetido a jornadas exaustivas.
Esse cenário reforça a urgência da regulação: trata-se de garantir não apenas direitos trabalhistas, mas condições mínimas de dignidade a milhões de trabalhadores que sustentam cotidianamente a engrenagem bilionária das plataformas.
No Congresso, três projetos passaram a disputar espaço em torno da regulação do trabalho em plataformas. O PLP 12/2024, apresentado pelo governo Lula, dirige-se aos motoristas de carro e prevê uma remuneração mínima horária de R$ 32,10, contribuição previdenciária compartilhada e possibilidade de negociação coletiva. Já o PL 2479/2025, conhecido como PL dos Breques e de autoria do deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP), resulta diretamente da mobilização dos trabalhadores e propõe um valor mínimo de R$ 10 por entrega até quatro quilômetros, seguro obrigatório e regras de transparência algorítmica.
Em contrapartida, surgiu o PLP 152/2025, apresentado pelo deputado Luiz Gastão (PSD-CE) e elaborado por uma comissão especial criada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), divulgado como a “síntese possível” para o tema. Na prática, entretanto, esse último projeto expressa o avanço de uma agenda alinhada à direita e extrema-direita, articulada ao lobby das plataformas digitais, cujo objetivo é neutralizar as propostas que buscavam responder às demandas emergenciais apresentadas pelos trabalhadores.
O PLP 152/2025 cria a figura do “autônomo plataformizado”, excluindo motoristas e entregadores de qualquer vínculo empregatício, negando remuneração mínima garantida e limitando a proteção previdenciária a uma contribuição reduzida de 5%. Todo o restante da regulação é remetido a contratos privados entre empresas e trabalhadores — um modelo que institucionaliza a precarização.
Para Sidnei Machado, professor e coordenador da CDT-UFPR, o projeto representa um esvaziamento completo das pautas históricas da categoria.
É um texto construído sob medida para atender apenas às plataformas, ignorando o PL dos Breques e mantendo a exploração sem garantias
afirma.
As empresas argumentam que mudanças mais profundas criariam “insegurança jurídica” e inviabilizariam o modelo de negócios. Esse discurso repete a retórica utilizada pela Uber e pelo iFood em diversos países para barrar regulações mais rígidas.
Na Europa e nos Estados Unidos, já foi denunciado como tentativa de consolidar regimes de exceção trabalhista
comenta Machado.
No Brasil, esse movimento ganhou força justamente quando os trabalhadores demonstraram capacidade de mobilização e colocaram suas demandas no centro do debate público. A ofensiva das empresas, apoiada por setores da direita e da extrema-direita, busca agora capturar o processo legislativo e transformar em lei a lógica da precarização.
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Falta de diálogo com a categoria
Para Nicolas Souza Santos, secretário da Associação dos Motoboys de Juiz de Fora (AMMEJUF), integrante da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos e do Comando Nacional do Breque, o projeto não tem qualquer legitimidade junto à categoria.
Não fazemos ideia de com quem o deputado Luiz Gastão, que propôs o PL, conversou. Mas com a gente não foi. Ninguém do Comando Nacional do Breque ou da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos foi consultado em nenhum momento
afirma.
Segundo ele, o PLP 152/2025 não dialoga com as demandas reais apresentadas nas ruas.
Sabemos que os deputados dirão que é um projeto base, que pode ser alterado. A gente conhece o processo legislativo e sabe disso, mas ainda fica a pergunta: por que não o PL 2479/25, redigido pela categoria e que reflete, de fato, as pautas das ruas nos dias 31 de março e 1º de abril?
disse.
Souza destaca que a proposta sequer trata da remuneração.
O texto só diz que o valor pago pelo cliente deve ser repassado integralmente, mas a gente não está interessado em quanto o cliente vai pagar, e sim em quanto vamos receber. Se o cliente pagar uma taxa de R$ 3, recebemos R$ 3? E se a taxa for grátis por alguma promoção? A precificação não está sob nosso controle, mas das empresas de aplicativos
declarou.
Ele também questiona a ideia de “autonomia” prevista no projeto.
Que autonomia existe se o trabalhador não precifica, não escolhe clientes, não tem livre recusa nem possibilidade de desistência e sequer negocia o contrato de prestação de serviços? O projeto pretende que as regras das empresas, decididas somente por elas e alteradas ao sabor da direção dos lucros, ganhem poder de lei
argumenta.
O resumo frio desse projeto é que dele não se aproveita nada. Sua aprovação busca apenas consolidar o estado de coisas como se encontram: entregadores mal remunerados, em jornadas exaustivas, sem descanso, sem capacitação, sem saúde, sem segurança e sem futuro, enquanto as empresas engordam seus lucros e a sociedade arca com os custos
sintetiza a liderança.
A batalha decisiva: Congresso ou ruas?
No presente momento, os três projetos continuam em tramitação no Congresso: o PL dos Breques (2479/2025) permanece em análise nas comissões; o PLP 12/2024, apresentado pelo governo Lula, enfrenta resistências internas na própria base governista; enquanto o PLP 152/2025 avança com o apoio firme das lideranças conservadoras da Câmara.
O desfecho dessa disputa dependerá não apenas das negociações e articulações políticas no Congresso Nacional, mas também da capacidade de mobilização social que os trabalhadores e seus aliados conseguirem construir em defesa de seus direitos.
A experiência do Breque dos Apps, em 2020, e do Breque dos Breques, em 2025, demonstra que essa não é uma mera questão técnica de regulação, mas sim uma batalha política decisiva
aponta o professor Sidnei Machado.
Está em jogo se as plataformas digitais no Brasil vão continuar explorando entregadores e motoristas sem nenhum direito, ou se será possível garantir um futuro de trabalho digno, com renda mínima, proteção social e direitos básicos para os milhões que sustentam o modelo bilionário dessas empresas.
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