A cobertura midiática de operações policiais em tempo real frequentemente opera sob uma lógica de produção noticiosa que privilegia o furo jornalístico e o impacto imediato. Nesse contexto competitivo, é recorrente a veiculação de informações ainda não devidamente checadas, que são apresentadas ao público como verdades factuais.
O jornalismo deveria ser uma das profissões mais preocupadas com checagem de fatos, sobretudo quando se fala de vidas humanas. Mas parece que quando se trata de vidas perdidas em operações policiais, as terminologias definitivas e carregadas de juízo de valor viram arroz de festa.
Quando uma grande emissora decide usar como a tarja “60 bandidos mortos” em momentos nos quais sequer houve tempo hábil para a correta identificação das vítimas ou para a apuração das circunstâncias exatas de cada óbito, ela manda uma mensagem a milhões de espectadores, que menos críticos ainda, espalharão esse senso comum como verdade absoluta. Foi assim com o Massacre do Carandiru, foi assim com o caso da Escola Base.
Essa prática, longe de ser um deslize ocasional, consolida-se como uma rotina produtiva. A repetição sistemática de uma narrativa que simplifica o conflito em “polícia versus bandidos” cria um script simplório, pronto para ser consumido pelas grandes massas, sempre ávidas para ter seu viés de confirmação de que “todo favelado é bandido” ser confirmado.
Colocar em letras garrafais que mais de 60 pessoas mortas em uma tarde são bandidas sem saber o básico do que houve é má fé temperada com doses cavalares de racismo.
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Ora, uma favela possui complexidade socioeconômica das favelas e é constituída de cidadãos com histórias plurais e não um palco homogêneo de ilegalidade. A TV e os grandes portais preferem trocar a figura do “suspeito” pela categoria genérica e desumanizadora do “bandido”, anulando a presunção de inocência e tornando heróis uma horda de fardados que já mostraram serem pouco afeitos a seguirem a legalidade.
A consequência direta dessa abordagem é a naturalização de um discurso maniqueísta, onde a letalidade estatal aparece não como uma questão complexa e problemática, mas como um resultado esperado e até mesmo legitimável.
A narrativa construída pela mídia hegemônica e sensacionalista, muitas vezes apressada, molda o imaginário popular, reduzindo vidas humanas a meros elementos de uma guerra espetacularizada, e que invariavelmente serve para justificar a perpetuação do próprio ciclo de violência que se propõe a noticiar.
A cobertura midiática não pode operar sob uma lógica de produção noticiosa que privilegia o furo jornalístico e o impacto imediato. O jornalista não pode condenar indivíduos sem nenhuma apuração, sendo guiado por preconceitos e senso comum. E nem vamos entrar no famigerado jornalismo declaratório, onde a reprodução de falas rasas ou absurdas é reproduzida sem criticidade acompanhando, convidando o público a refletir.
A linguagem é poderosa e pode matar pela segunda vez quem já não pode se defender
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