Gilmar nasceu na Bahia, mais precisamente em Presidente Dutra, um município localizado no interior e norte do estado da Bahia, no sertão baiano. Aos oito anos de idade, deixou a cidade e se mudou para São Paulo, estabelecendo-se na região do Grande ABC, onde, aos 15 anos, começou a trabalhar em uma fábrica de porcelana. Naquele ambiente, o pó branco da porcelana ficava por toda parte: no chão, nas paredes, no cabelo e na roupa dos trabalhadores. Para Gilmar, aquilo acabou se tornando um estímulo: ele passava o tempo fazendo desenhos nas paredes, explorando seus primeiros traços.
Eu me perdia ali fazendo desenhos com o dedo nas paredes, perdia até a noção do tempo, comecei meus primeiros traços aí, meio intuitivo até
conta.

Ele trabalhou na fábrica por três anos, conciliando o expediente diurno com os estudos à noite, em um ritmo intenso. O ambiente, porém, era perigoso: todos os trabalhadores eram menores de idade, e acidentes eram comuns. Gilmar lembra que o momento mais crítico era após o almoço, por volta das 14h, quando a sonolência aumentava e acidentes aconteciam com frequência. Ele próprio perdeu um pedaço de dedo nesse período.
Após três anos, decidiu deixar a fábrica e seguir o sonho de se tornar desenhista. Sem referências ou orientação sobre o que fazer, o desenho ainda era um hobby. Por volta dos anos 80, Gilmar saiu pela cidade carregando alguns de seus desenhos e acabou em frente à sede do PT Regional do Grande ABC.
Nessa época o desenho era visto como algo nada profissional
disse Gilmar.
Enquanto esperava, um jornalista que passava por ali percebeu seu talento e disse:
Você é um cartunista. Vamos trabalhar comigo no sindicato dos condutores do Grande ABC
Gilmar nem sabia exatamente o que significava ser um cartunista, mas aceitou o convite. Imediatamente, começou a produzir tirinhas e desenhos para o sindicato, dando início à sua trajetória profissional na arte. Naquela época, todo o trabalho era feito à mão. O texto era produzido na máquina de escrever, e depois recortado à tesoura para montar os títulos e o boletim que seria entregue aos trabalhadores no dia seguinte. Esse foi o início da trajetória profissional de Gilmar.
Quanto às influências, no começo ele não tinha referências claras no desenho. Lembrava-se apenas das revistas em quadrinhos que lia na juventude, como a Turma da Mônica e o Almanaque Disney. Somente mais tarde, quando já produzia material para sindicatos, Gilmar começou a se inspirar em outros cartunistas, como Laerte e Angeli, artistas que nos anos 80 e 90 estavam presentes nas bancas de jornal.
Fui ter as referências quando já estava trabalhando no sindicato, e o meu traço foi se moldando a partir desse pessoal nessa época
relata.
Atuação na política
Quando olha para sua carreira, Gilmar lembra do início de seu trabalho ligado às questões políticas e sociais dentro do sindicato. Ele atuou por dez anos na imprensa sindical, trabalhando para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Durante esse período, teve contato com lideranças políticas e participou da produção de um jornal com tiragem diária de 45 mil exemplares, além de uma revista semanal. Seu trabalho alcançava não apenas os trabalhadores das fábricas, mas também a sociedade em geral, com distribuição em pontos de ônibus e outros locais estratégicos.
O desenho nessa época era muito importante porque a gente traduzia a matéria para facilitar a leitura do trabalhador
explica.
O verdadeiro divisor de águas, segundo Gilmar, aconteceu quando ele deixou a imprensa sindical e passou a atuar na chamada grande imprensa, nos principais jornais da época. Foi nesse momento que sua carreira ganhou uma nova configuração, mas sempre mantendo a abordagem política e social que havia marcado o início de seu trabalho artístico.
Processo criativo

Gilmar explica que seu processo criativo hoje é bastante influenciado pelo cuidado com a veracidade das informações, diante do perigo das fake news nas redes sociais. Para ele, é essencial levantar o que é fato, apoiando-se em fontes confiáveis, como jornalistas que apuram os acontecimentos. Ele também ouve opiniões de diferentes lados, para entender os contextos e se posicionar de forma consciente em suas charges.
No início de sua carreira, quando trabalhava para jornais, produzia principalmente tirinhas para cadernos de entretenimento e cultura. Até 2018, ele considera que sua trajetória passou por outro divisor de águas: a chegada da internet e das redes sociais. Com o declínio dos jornais impressos, Gilmar precisou se adaptar, e foi nesse contexto que descobriu o verdadeiro potencial da charge política.
Não se faz charge política no Brasil. É uma mera ilustração porque os jornais, na história, sempre defenderam um um regime político e econômico. A tua charge não pode ser crítica a ponto de ser original como ela deveria ser. Você tem limites, você se submete ao crivo editorial e automaticamente ao crivo do empresariado que tem o poder dessa comunicação naquele momento. Isso pode mudar conforme o momento político
disse.
Então o cartunista é um mero ilustrador, ele não fazia charge política. Eu descobri a charge de verdade quando eu me auto-editei, ou seja, quando eu fiz as coisas para minhas próprias redes sociais. Sem vínculo com o jornal, de maneira independente. Aí eu senti como é realmente fazer um trabalho de charge política de verdade
complementou.

O processo criativo de Gilmar é intenso e solitário. Apesar de ter experimentado ferramentas digitais, ele prefere o papel e a caneta, pela expressão e intensidade emocional que proporcionam. Ele seleciona uma informação relevante, apura os fatos com jornalistas de referência e rapidamente faz esboços a lápis, mantendo a tradição de sua geração. Depois, finaliza o desenho com caneta preta, digitaliza a imagem e aplica cores no Photoshop, utilizando ferramentas simples para preparar a ilustração para publicação. Esse ritmo exige rapidez: no jornal impresso, uma charge podia ser produzida e publicada em um dia, enquanto nas redes sociais o processo é ainda mais ágil, exigindo atualização constante e imediata.
Obras impactantes
O cartunista reflete sobre suas obras mais representativas, destacando a constante autocrítica que acompanha seu trabalho. Ele explica que, com o tempo, tudo que produz muda — o traço, o conteúdo e a forma de abordar os temas.
A gente acaba sendo muito autocrítico. Eu, por exemplo, faço as coisas, depois que passa um tempo eu já nem vejo mais porque eu faria diferente. O meu trabalho com o passar do tempo, dos anos, ele se transforma muito. As coisas que eu fazia um ano atrás, já são muito diferentes. Então, tá sempre mudando, tanto em traço como em conteúdo
reflete.
Entre as obras que considera significativas, menciona um desenho feito no primeiro ano do governo Bolsonaro, abordando a questão indígena. O desenho retrata um indígena recém-nascido ligado a uma árvore por um cordão umbilical, prestes a ser cortado por uma mão com faca, simbolizando a violência contra a Amazônia e os povos originários.

Outro trabalho que considera marcante foi criado em resposta ao ataque a um jornal francês, o Charlie Hebdo, em 2015, no qual vários cartunistas foram mortos.
Eu fiquei muito impactado com aquela cena, fiquei pensando muito em fazer alguma charge mas não consegui, fui dormir e só consegui fazer no dia seguinte

A charge mostra um lápis gigante que se afia sozinho e enfrenta o terrorista, transformando a violência em uma metáfora de resistência e educação. Essa obra participou de um festival em Oslo, Noruega, recebendo premiação e reconhecimento internacional.
Acho que ele é atemporal
disse.
Premiações

Gilmar foi eleito Melhor Cartunista Brasileiro no Troféu HQ Mix de 2003, conquistou o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos em 2006 e teve destaque em festivais internacionais de humor e quadrinhos. Segundo ele, receber prêmios funcionam como estímulo e validação, principalmente considerando o caráter solitário do trabalho do cartunista.
Por exemplo, quando você recebe um prêmio como o Vladimir Herzog, dentro de uma pauta que eu faço a minha vida inteira, é muito significativo, é uma complementação do que você está fazendo, apesar da gente ser muito crítico, a gente trabalha principalmente individualmente, muito sozinho, não tem um feedback momentâneo de criação, então você fica muito ali se auto-cobrando
conta.
Aí quando você decide por si só, um desenho desse, um trabalho como esse crítico e você submete a um concurso tão importante como é o Vladimir Herzog de direitos humanos e de comunicação e tem uma premiação, você fala: cara, espera aí, então nesse aqui eu acho que eu caminhei certo
comemora.

Ele reforça que seu humor é altamente crítico e reflexivo, carregado de indignação e intenção de provocar impacto no espectador, mais do que simplesmente divertir.
Dentro do meu trabalho não tem muito humor. Eu uso o traço de humor, mas ele é altamente crítico. Pesado, reflexivo. Ali eu coloco toda a minha indignação. Eu acho muito mais contundente, crítico e procuro tocar de uma forma até agressiva, você pega alguns desenhos e eles são agressivos, eles são chocantes. Então, eu acho que é muito mais crítico, mais contundente, mais um grito do que propriamente um humor. Apesar de usar um traço de cor
explica.
Quanto a projetos futuros, Gilmar revela a vontade de extrapolar o formato tradicional do desenho em papel. Ele já vem realizando intervenções em larga escala nas ruas, como um lambe-lambe de 3 metros de altura por 12 de largura na Avenida Paulista.

Eu tenho muita vontade de sair do papel. É uma vida inteira dentro de 21cm por 30cm. Aquele papel sulfite ali. E eu tenho muita ânsia, muita vontade de extrapolar aquele aquele espaço físico limitadíssimo. Tenho até feito experimentações com lambe nas ruas e teve um impacto muito legal, muito importante. Isso me estimula depois de muitos anos no papel de prancheta
conta.
Relação com a IA
Gilmar reflete sobre os impactos da inteligência artificial em sua área, reconhecendo que, mesmo com tecnologias avançadas, sempre haverá a necessidade de um pensamento humano por trás do comando que gera os resultados. Ele observa que a IA atinge não apenas as artes gráficas, mas também áreas como animação e música, trazendo mudanças profundas e desafiadoras para profissionais criativos. Para o cartunista, essas situações reforçam a necessidade de compreensão, diferenciação e adaptação a novas ferramentas tecnológicas.
A experiência o faz lembrar da chegada do computador, que revolucionou a produção gráfica, inclusive no período em que atuava na imprensa sindical. Ele recorda a transição do uso de chumbo na impressão para as tecnologias digitais e como algumas pessoas da equipe não conseguiram se adaptar, enquanto outros persistiram, aprendendo a linguagem digital e se reinventando.
Muita coisa se transformou de lá para cá e muito rápido. Eu lembro muito bem, eu ainda estava na Imprensa Sindical quando chegou o computador. Lembro que a gente era uma equipe no departamento de arte, acho que sei lá, umas oito pessoas, entre cartunistas, diagramadores. Teve dois deles, isso é muito significativo, que não se adaptaram ao computador e foram fazer outra coisa
lamenta.
Com a chegada da internet e das redes sociais, Gilmar passou anos tentando entender como se comunicar nesse novo formato, explorando vídeos e novas formas de expressão.
Cara, que negócio é isso de rede social, internet? Como é que faz isso? Eu fiquei pelo menos uns quatro anos batendo a cabeça, tentando entender em crise e tal, o que que eu faço agora? Eu vou ter que me comunicar em vídeo para as pessoas, eu vou ter que fazer o quê? E aí você acha o teu caminho
disse.
Para ele, a lição é clara: é preciso aproveitar toda tecnologia disponível para enriquecer e valorizar o trabalho artesanal, intelectual e artístico, sem permitir que ela substitua ou prejudique a essência da criação humana. A tecnologia deve servir como ferramenta para ampliar possibilidades, não como obstáculo à expressão crítica e artística.
A gente tem que aproveitar toda a tecnologia, toda a informação da melhor maneira para o nosso trabalho enriquecer. Tem que pensar sempre nisso e aproveitar essa tecnologia toda para enriquecer, para dar mais valor a isso
enfatiza.
Jornal impresso x redes sociais
O cartunista comenta sobre a diferença entre a comunicação nos jornais impressos e nas redes sociais. Ele lembra que, na época dos jornais, receber feedback era extremamente difícil. As interações se limitavam a cartas de leitores, geralmente críticas. Ele cita um episódio marcante em que publicou uma charge para a OAB mostrando uma mulher no lugar de Jesus Cristo na crucificação. A repercussão foi enorme: choveu de cartas acusando-o de profanação, e o jornal precisou se retratar.
Agora hoje com a internet é muito instantâneo, se você faz uma coisa ou deu errado ou deu muito certo
fala.

Desde 2018, Gilmar vem usando seu trabalho para criticar a extrema direita, enfrentando ataques de haters e bots. Ele admite que, em alguns momentos, a intensidade dos comentários e julgamentos o deixou emocionalmente abalado, questionando suas próprias convicções. O cartunista lembra de um episódio quando foi perseguido por bolsonaristas por causa de suas charges:
Eu lembro que na campanha de 2018 eles [extrema-direita] falaram: ‘você não pode fazer isso, você tem que respeitar o capitão’. Aliás, esse é um dos motivos pelo qual eu fiz cada vez mais. Porque eu sou teimoso, cara. Sou rancoroso e canceriano
brinca.
Quando uma das charges que eu fazia caía nessa rede bolsonarista era terrível, porque tinha aquela artilharia pesada de bots, de haters. Eu entrava até meio em depressão em alguns momentos, porque você é julgado assim, eu entrava em parafusos, pensava: ‘cara, será que tô certo mesmo?’ Muito louco esse efeito psicológico, emocional. Será que eu tô certo? O que que tá acontecendo?
acrescenta.
Mesmo com familiares discordando, ele encontrou apoio em sua rede de seguidores, que se mobiliza para defender e debater suas ideias, ampliando o alcance e o impacto de suas charges.
Você cria uma rede de quem veste a tua camisa, que é muito maior. Isso te estimula e dá apoio, que é o que eu tenho nas redes sociais. É muito interessante, porque os feedbacks vão rolando e tem um que apita contra. Aí eu tenho uma galera, um time forte que vai lá e combate. Eu não preciso falar uma palavra, já tá dado o recado na imagem. Aí eu tenho uma galera que veste, de fato, com coração mesmo, de mobilização e que vai lá e questiona e debate e pergunta, ‘mas por que você está falando isso?’ Então esse efeito das redes sociais é muito interessante, é incrível
enfatiza.
Para Gilmar, a força das redes sociais está justamente nesse efeito de mobilização e resposta rápida. Um desenho crítico pode gerar discussão, apoio e questionamentos, sem que ele precise intervir diretamente. Ele destaca que essa experiência ensina sobre o poder da comunicação e sobre a dificuldade de dimensionar até onde uma mensagem pode chegar. A reação imediata e intensa do público transformou a prática do cartunista, ampliando o alcance social e político de seu trabalho de maneira inédita.
Nova geração
O cartunista compartilha uma experiência que o emocionou profundamente em Curitiba, durante a sua participação na 18ª Bienal de Quadrinhos, envolvendo a nova geração de leitores. Um garoto de 12 anos se aproximou dele durante um evento, ansioso para falar com o cartunista. O menino começou a folhear os livros de Gilmar, uma coletânea de quatro anos de charges sobre Bolsonaro, e passou a citar detalhes específicos das ilustrações.

O olhar atento do garoto, acompanhado pelo pai e pelos irmãos, impressionou Gilmar: era a prova de que a política e a crítica social estavam alcançando uma nova geração, envolvida e consciente.
Eu vi muitos jovens passarem lá, olhar de longe, ver a capa do Bolsonaro rir ou fazer algum comentário. Eles sabem quem é, quem foi. Antigamente a gente não sabia quem era presidente do Brasil, quem era ministro disso, daquilo ou outro
disse.
Isso me deixou muito emocionado. É um garoto que poderia estar muito bem com o seu celular, games, sei lá onde. Mas isso é muito simbólico de uma nova geração que tá muito ligada no que tá acontecendo
complementa.
Arte como crítica e reflexão
Ao longo de sua trajetória, Gilmar construiu uma carreira marcada pelo olhar atento à política, à sociedade e às mudanças que atravessam o Brasil. Do trabalho artesanal nos sindicatos à experimentação independente nas redes sociais, ele aprendeu a traduzir fatos e indignações em imagens que dialogam com o público de maneira imediata e profunda. Seus desenhos não são apenas charges ou tirinhas; são instrumentos de reflexão, crítica e, ao mesmo tempo, de conexão com gerações diversas.
Entre prêmios nacionais e internacionais, experiências com censura, desafios das bolhas digitais e o impacto da tecnologia, Gilmar mantém a essência de seu trabalho: transformar informação em expressão artística e social. Ele acredita no poder do humor crítico, da criatividade e do traço autêntico para provocar pensamentos, educar e desafiar realidades. Mesmo diante das novas ferramentas, como a inteligência artificial, ele vê na adaptação e no uso consciente da tecnologia uma oportunidade de enriquecer seu trabalho, sem perder o toque humano, a sensibilidade e o olhar ético que sempre marcaram sua obra.
No fim, o que permanece é essa busca incessante por tocar as pessoas, questionar o mundo e, acima de tudo, mostrar que a arte, mesmo simples em sua forma, tem força para transformar percepções e inspirar diálogos que atravessam gerações.
Acompanhe o trabalho do Gilmar nas redes sociais.
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