“Da Lata” é, até hoje, uma peça central para entender como ritmos urbanos, poesia marginal, batidas eletrônicas e identidade brasileira se entrelaçaram para formar o que hoje chamamos de “pop nacional”. Mais que um álbum, tornou-se um manifesto sonoro sobre o Rio de Janeiro, suas contradições e sua pulsação estética, sempre exuberante, mesmo em meio ao caos social.
Quando o disco chegou às lojas, em 1995, o Brasil vivia uma década de transformações profundas, e a música refletia esse movimento. A dance music ainda engatinhava no país, os bailes funk eram vistos com desconfiança e a mistura de referências nacionais com eletrônica parecia ousadia demais para boa parte da indústria fonográfica.
Nesse cenário, Fernanda Abreu apresentou um disco que não apenas desafiou o status quo, mas abriu caminho para toda uma geração de artistas que, décadas depois, consolidariam o pop brasileiro como uma força criativa global.
A construção de uma estética: do pós-Blitz ao laboratório de sons

Para chegar ao disco que marcaria sua carreira, Fernanda percorreu um caminho incomum. Após o fim da Blitz, em 1986, quando muitos esperavam que ela embarcasse imediatamente em um projeto solo, a cantora fez justamente o contrário: recuou. Em vez de aproveitar o impulso comercial daquele momento, optou por pesquisar sonoridades e amadurecer uma linguagem própria.
Seu primeiro álbum, “SLA Radical Dance Disco Club” (1990), já anunciava uma artista em busca de novas combinações. Inspirada pela disco music, pelo pop eletrônico e pela cena internacional do início dos anos 1990, Fernanda introduziu a técnica do sample em um mercado que ainda não lidava com esse recurso de forma estruturada. Patti LaBelle, Michael Jackson e Madonna apareciam ali reorganizados sob um olhar brasileiro, e isso não era comum.
O disco seguinte, “SLA 2 – Be Sample”, manteve essa linha estética, mas acrescentou um elemento que viria a definir sua trajetória: uma crônica musical sobre o Rio de Janeiro, transformada no hit “Rio 40 Graus”. Ali estava a síntese que guiaria “Da Lata”: o olhar urbano, a fusão de ritmos e uma identidade carioca que escapava de caricaturas.
Mesmo assim, faltava uma obra que unisse esse universo pop ao Brasil profundo, aquele que se expressa na batucada de rua, nos bailes, nas escolas de samba e em todas as linguagens que surgem à margem dos centros de poder cultural. E é justamente desse desejo que nasce “Da Lata”.
O símbolo de um país: da gíria ao conceito artístico

O título do álbum tem origem em um episódio que marcou o imaginário popular: o “Verão da Lata”, quando milhares de latas cheias de maconha foram lançadas ao mar por tripulantes de um navio que tentava despistar autoridades.
As embalagens se espalharam pelo litoral brasileiro e rapidamente viraram símbolo de um verão caótico e folclórico. Daí, a expressão “da lata” passou a significar algo “da boa”, “de qualidade”.
Fernanda enxergou nessa palavra não apenas uma gíria divertida, mas uma metáfora do próprio Brasil. A lata, barata, brilhante, presente no improviso musical das periferias, sintetizava luxo e lixo, festa e desigualdade, criatividade e precariedade.
Transformar esse objeto em conceito artístico foi uma escolha que ampliou o alcance do disco. A capa utilizou sucata como figurino e cenário; os arranjos abraçaram a percussão reciclada; a sonoridade destacou o batuque que ecoa das ruas. Tudo dialogava com a ideia de que a cultura brasileira vibra em qualquer contexto, mesmo nas brechas.
Essa decisão estética encontrou parceiros ideais na produção: Liminha, Will Mowat, Chico Neves e Marcelo Mansur colaboraram para um álbum que, apesar de profundamente carioca, soava cosmopolita. Não por acaso, sua mixagem foi feita em Londres, no estúdio da banda Soul II Soul, que influenciava a cena global de música eletrônica e R&B.
O resultado foi um disco solar, vibrante, híbrido e atemporal, uma obra que não se limita ao gênero “pop”, mas o reinventa.
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Do samba ao funk: o mapa sonoro de um Rio reinventado

O repertório de “Da Lata” funciona quase como uma viagem pelo Rio de Janeiro e pelos sons que moldaram sua identidade musical. Em um único trajeto, o álbum cruza escolas de samba, bailes funk, poesia marginal e referências à bossa nova, à soul music e ao hip-hop.
“Veneno da Lata”, a faixa de abertura, é uma explosão de ritmo, sintetizando a combinação que define o disco: samba, funk e batidas eletrônicas convivem sem hierarquia. A presença de Herbert Vianna reforça essa mistura entre guitarra pop e percussão de raiz.
Logo depois, “Garota Sangue Bom” redesenha a figura da mulher carioca com humor, sensualidade e uma energia que é ao mesmo tempo urbana e festiva. Já “Tudo Vale a Pena” observa a vida nas periferias do Rio, mas sem apelar para discursos panfletários. Fernanda sempre encontrou poesia na resistência cotidiana, e isso está presente nas entrelinhas da faixa.
Há também a camada romântica do álbum, com “Um Dia Não Outro Sim” e uma interpretação delicada de “A Tua Presença Morena”, de Caetano Veloso. Ambas revelam um domínio vocal mais amplo e uma faceta emocional que contrasta com o pulso dançante das outras faixas.
Em “Brasil é o País do Suingue”, Fernanda assume um mapa afetivo do país. A música visita regiões e estilos, mencionando sons, ritmos e modos de viver típicos de estados distintos. No videoclipe, ela aparece conduzindo um verdadeiro carnaval na Sapucaí, vestindo o icônico sutiã de frigideiras, símbolo do conceito que une irreverência e crítica social.
O disco ainda reserva momentos de experimentação, como “SLA 3”, que brinca com palavras e identidade; “Somos Um (Doomed)”, uma balada R&B pouco convencional; e “A Lata”, pequena performance que mistura rap, poesia e ambientações noturnas.
Ao final, a regravação de “Babilônia Rock” amarra tudo: funk, soul e guitarras se unem para fechar o percurso com um brilho quase cinematográfico.
O impacto no pop nacional e a herança para novas gerações

Embora tenha vendido mais de 100 mil cópias e circulado pela Europa e pelo Japão, o alcance de “Da Lata” não se mede apenas em números. O álbum preparou terreno para o que o pop brasileiro se tornaria décadas depois: múltiplo, urbano, conectado ao mundo sem perder sotaque.
Nos anos 2010, quando produtores como Kondzilla levaram funks e hip-hops periféricos ao mainstream, muitos passaram a perceber que a mistura entre batidão, pop e discurso urbano já tinha sido experimentada no Brasil nos anos 1990, e que Fernanda estava no centro dessa construção.
Hoje, ao olharmos para nomes como Anitta, Ludmilla, Pabllo Vittar, IZA, Karol Conká e tantos outros que moldam o pop contemporâneo, fica evidente que há um fio condutor entre o que essas artistas fazem e o que Fernanda idealizou.
A dança como linguagem, a estética urbana como força criativa, a fusão de ritmos globais com referências brasileiras, a valorização da cultura periférica, tudo isso já estava em “Da Lata”.
Após o pico dos anos 1990, Fernanda lançou menos discos, mas manteve a ousadia. Em 2016, “Amor Geral” mostrou uma artista ainda inquieta, dialogando com o hip-hop, a eletrônica e linguagens emergentes. A consistência estética e o rigor conceitual permanecem marcas registradas.
Mas nada supera o impacto de “Da Lata”, cuja relevância resiste ao tempo porque nasceu da observação sensível de um país complexo e criativo. O disco transformou latas, sucatas, sons das ruas e histórias de anonimato em arte pop. E, ao fazer isso, ensinou que a música brasileira pode ser dançante e profunda ao mesmo tempo, basta olhar para o próprio entorno com atenção.
Três décadas depois, a obra continua soando atual. Talvez porque o Brasil ainda seja um lugar onde luxo e lixo convivem, onde festa e tragédia se misturam, onde a criatividade emerge justamente das frestas.
Ou talvez porque, no fundo, a música de Fernanda Abreu capturou algo que permanece vivo no imaginário popular: a capacidade de transformar dificuldade em brilho, e caos em ritmo.
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