Skip to content Skip to footer

Comando Vermelho: meio século entre o cárcere e o caos nas ruas do Rio

Comando Vermelho
(Foto: Agência Brasil/Reprodução)

O Comando Vermelho nasceu de um erro histórico. Em 1970, durante os anos mais duros da ditadura militar, o governo brasileiro decidiu misturar presos políticos com criminosos comuns na penitenciária Cândido Mendes, na Ilha Grande, litoral sul do Rio de Janeiro. A ideia era tratar militantes da esquerda armada como delinquentes comuns, mas o resultado foi justamente o contrário: a convivência forçada acabou gerando uma das mais poderosas organizações criminosas do país.

Os detentos políticos, em sua maioria jovens instruídos, criaram formas de organização interna que chocavam os criminosos acostumados ao caos carcerário. Montaram biblioteca, despensa coletiva e farmácia comunitária. Impuseram regras que proibiam roubos e estupros dentro do presídio. 

Ao compartilhar comida, livros e ideias, ensinaram também que, unidos, os presos podiam reivindicar direitos. Quando os guerrilheiros foram libertados, em 1979, o legado permaneceu. Os criminosos comuns aprenderam com eles a se organizar, e passaram a usar esse aprendizado para dominar o sistema penitenciário.

Naquele mesmo ano, uma briga entre grupos rivais na penitenciária terminou em massacre. Seis detentos foram mortos com armas improvisadas, no caso, colheres afiadas e pedaços de madeira com pregos. Foi o batismo de sangue da Falange Vermelha, que mais tarde adotaria o nome Comando Vermelho (CV).

Do cárcere ao domínio das favelas

Presídio da Ilha Grande
Presídio da Ilha Grande: o berço do Comando Vermelho. (Foto: Reprodução)

Quando a prisão da Ilha Grande foi desativada, em 1994, o CV já havia extrapolado os muros. Fugindo em massa e se organizando fora das grades, os líderes passaram a controlar o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. O que começou como um “comando” para defender presos tornou-se uma rede de poder, com influência em dezenas de comunidades.

A facção expandiu-se durante os anos 1980, época em que o Brasil virou rota internacional do tráfico de cocaína, impulsionado pela produção crescente na Colômbia e na Bolívia. O Rio, com seus portos e favelas densamente povoadas, tornou-se ponto estratégico. Para proteger seus lucros, o Comando Vermelho se armou e o Estado respondeu com violência.

A guerra entre facções e forças policiais se tornou rotina. Nos anos 1990, a taxa de homicídios no Rio atingiu níveis recordes. Cada tentativa de desarticulação apenas espalhava o problema: ao transferir líderes do CV para presídios de outros estados, o governo, sem querer, ajudou a exportar o modelo. O que era um fenômeno fluminense tornou-se nacional.

Um império criminal em expansão

Território dominado por facções
Regiões dominadas por facções no Rio de Janeiro em 2014. (Imagem: Mapa dos Grupos Armados/Divulgação)

De acordo com o Mapa dos Grupos Armados, desenvolvido pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (GENI), o Comando Vermelho domina hoje mais da metade das áreas controladas por facções na Região Metropolitana do Rio. Está presente em ao menos 20 estados e atua, inclusive, em países vizinhos.

A organização funciona como uma espécie de franquia criminal. Cada “dono de morro” tem autonomia, mas adere ao mesmo pacto de lealdade e à mesma lógica de negócios. Essa descentralização explica a resistência e o crescimento do grupo mesmo após sucessivas perdas de chefes.

Nos últimos anos, o CV ampliou sua atuação na Amazônia, nas fronteiras com Bolívia, Peru e Colômbia, garantindo rotas de escoamento de drogas para a Europa e a África. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que o crime organizado movimentou cerca de R$ 146 bilhões em 2022, somando narcotráfico, contrabando, garimpo e comércio ilegal de ouro e combustíveis.

A expansão também se apoia em novas tecnologias. Em agosto, a Polícia Federal encontrou em Rio das Pedras uma fábrica de armas com impressoras 3D capazes de produzir peças metálicas em larga escala. Durante a recente megaoperação no Complexo da Penha, criminosos usaram drones equipados com explosivos, um sinal de que o arsenal e a estratégia do crime evoluíram.

A operação mais letal da história

Mortos em chacina no Rio
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Na terça-feira, 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro viveu um novo capítulo dessa guerra. Uma operação conjunta das polícias Civil e Militar, batizada de Operação Contenção, deixou mais de 120 mortos, incluindo quatro policiais. O número total de vítimas, segundo investigações, pode ultrapassar esse número.

A ação mobilizou 2,5 mil agentes e tinha como objetivo prender lideranças do Comando Vermelho nos complexos da Penha e do Alemão. Ao longo do dia, a cidade mergulhou no caos: tiroteios se espalharam, vias foram bloqueadas, lojas fecharam as portas e moradores tentavam fugir de áreas em conflito.

Apesar do tamanho da operação e do arsenal apreendido (mais de 100 fuzis), especialistas avaliam que ações desse tipo pouco enfraquecem o poder das facções.

Essas ofensivas atingem sobretudo a base pobre do crime, não a estrutura financeira nem a logística internacional

explica a socióloga Carolina Grillo, da UFF.

Dados do GENI e do Instituto Fogo Cruzado confirmam: os territórios dominados pelo tráfico são os que mais sofrem intervenções policiais e registram os maiores índices de confrontos armados. Em quase 60% dessas áreas, há envolvimento direto das forças de segurança.

O Estado ausente e o crime presente

Comando Vermelho no Rio
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Desde a redemocratização, o Rio alterna governos com promessas de “retomar o controle” das favelas. Nenhum conseguiu. Cada tentativa de “pacificação” se dissolveu em meio à corrupção, à falta de políticas sociais e à ausência de coordenação entre as forças de segurança.

Enquanto isso, o Comando Vermelho aprendeu a ocupar o vácuo deixado pelo poder público. Nas áreas sob seu domínio, atua como um Estado paralelo: impõe regras, cobra “taxas” e oferece uma forma brutal de “justiça” que, paradoxalmente, é vista por parte dos moradores como mais eficiente que a estatal.

O fenômeno não é isolado. O Primeiro Comando da Capital (PCC), nascido em São Paulo, seguiu caminho semelhante. Mas, enquanto o PCC se estruturou como uma organização hierárquica e empresarial, o CV manteve um perfil mais fragmentado, com alianças e traições constantes. 

Essa diferença explica por que o Rio vive uma guerra contínua entre o CV, o Terceiro Comando Puro (TCP), a Amigo dos Amigos (ADA) e as milícias (grupos formados por ex-policiais e agentes de segurança).

A disputa entre tráfico e milícias é o novo eixo da violência fluminense. Segundo o policial federal Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o Comando Vermelho vem aproveitando a desarticulação de chefes milicianos para ocupar territórios estratégicos na Baixada Fluminense e no Leste Metropolitano”.

O desafio do futuro

Traficantes
(Foto: Internet/Reprodução)

A história do Comando Vermelho é, antes de tudo, a história do fracasso das políticas públicas brasileiras. Desde sua origem no cárcere, o grupo se alimentou da negligência estatal, seja nas prisões, nas favelas, nas fronteiras e na própria estrutura de segurança.

A repressão, por si só, nunca bastou. O sociólogo Michel Misse já afirmava, ainda nos anos 1990, que “a política de confronto apenas realimenta o inimigo”. Quase 30 anos depois, o diagnóstico continua válido: as operações violentas seguem se multiplicando, mas o poder das facções não diminui.

Hoje, o Comando Vermelho é um conglomerado criminal com alcance global, presente em mais de 20 estados e articulado com cartéis internacionais. Seu crescimento está ligado não apenas ao tráfico, mas também ao controle de serviços urbanos clandestinos, ao comércio de armas e à lavagem de dinheiro.

Especialistas defendem uma mudança de paradigma: investir em inteligência policial, em regulação urbana e em políticas sociais que reduzam a vulnerabilidade das comunidades. Combater o crime, afirmam, não é apenas prender: é oferecer alternativas.

Enquanto o Estado insistir em estratégias de guerra, o ciclo continuará: operações, mortes, fugas e reorganização do crime. Quase meio século depois da primeira chacina na Ilha Grande, o que nasceu do improviso de um sistema prisional falido transformou-se num império sustentado pelo vazio deixado pelo poder público.

O Comando Vermelho segue, assim, como um espelho distorcido do Brasil: uma estrutura que cresce onde o Estado não chega, que se organiza onde as instituições fracassam e que sobrevive, sobretudo, da ausência de um projeto duradouro de justiça e segurança.

*Com informações do O Globo, portal g1, O Tempo e Fonte Segura.

Bookmark

Henrique Romanine

Jornalista, colecionador de vinil e apaixonado por animais, cinema, música e literatura. Inclusive, sem esses quatro, a vida seria um fardo.

Mais Matérias

29 out 2025

Número de mortes em chacina no Rio passa de 130, diz defensoria

De acordo com o órgão, o balanço atualizado soma 128 civis e quatro policiais, totalizando 132 mortos
29 out 2025

Movimentos populares denunciam execuções sumárias e impedimento de socorro a feridos em operação no RJ

Vida dos moradores das favelas está sendo tratada como “dano colateral em operações”, diz federação
29 out 2025

Cinco governadores do RJ foram presos por corrupção

Só Nilo Batista (PDT), governador entre 1994 e 1995; e Benedita da Silva, governadora entre 2002 e 2003 não foram presos
29 out 2025

Governador do RJ deixou de usar R$ 190 milhões repassados pelo governo federal para segurança

Do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), foram transferidos mais R$ 288 milhões
29 out 2025

Governadores de direita fazem política em cima de cadáveres

Bolsonaristas vão ao RJ expressar “solidariedade” a Cláudio Castro, mas todos eles boicotaram a PEC da Segurança enviada ao Congresso em abril

Daniel Alves reaparece como pregador evangélico em culto evangélico na Espanha

Daniel Alves reaparece como pregador evangélico em culto evangélico na Espanha

Como você se sente com esta matéria?

Vamos construir a notícia juntos

Deixe seu comentário