Quando a cena ballroom do Harlem começou a florescer nos anos 1980, poucos imaginavam que aquele universo de dança, moda improvisada e resistência criativa chegaria um dia ao centro da cultura pop. Nascido das margens, impulsionado por artistas negros e latinos que buscavam um espaço seguro para existir, o voguing era mais do que passos angulosos e poses fotográficas: era uma linguagem de sobrevivência em meio à crise da AIDS, à violência e à exclusão social.
Esse movimento subterrâneo ganhou uma inesperada vitrine em 1990, quando Madonna lançou “Vogue”, música criada quase como um improviso de estúdio e que, contra qualquer previsão, se tornou o maior sucesso global daquele ano.
O clipe em preto e branco dirigido por David Fincher transformou gestos da ballroom em estética de luxo, e os dançarinos da House of Xtravaganza ajudaram a levar para a TV um estilo que, até então, existia apenas entre quem vivia à margem.
A explosão pop trouxe visibilidade inédita, mas também abriu debates que ecoam até hoje: até que ponto houve celebração ou apropriação? Enquanto parte da comunidade queer viu na faixa uma oportunidade histórica de ser reconhecida além dos salões de Nova York, outros temiam que o significado político do voguing fosse reduzido a moda passageira.
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Três décadas depois, o impacto permanece incontornável. “Vogue” continua a ser porta de entrada para novas gerações descobrirem uma cultura que moldou identidades, acolheu quem não tinha onde ficar e reinventou a própria ideia de família por meio das “houses”.
A trajetória do estilo, agora atravessada por novas expressões como a cena kiki, mostra que aquilo que começou como um refúgio continua inspirando artistas, séries, hits pop e movimentos políticos mundo afora.
Mais do que um clássico de Madonna, “Vogue” virou símbolo de liberdade, e um lembrete de que a busca por espaço, voz e beleza ainda move quem dança, ontem e hoje.
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