Alberto Pereira é um dos principais nomes da arte urbana no Brasil. Fundador do Instituto Lambes Brasil, ele construiu uma trajetória marcada por experimentações visuais e disputas políticas travadas no espaço público. Sua obra, que circula entre muros, galerias e até mesmo ambientes religiosos, questiona estruturas sociais, desafia apagamentos históricos e coloca o corpo negro no centro das narrativas.
Conhecido pela peça Jesus Pretinho — já apropriada em contextos tão diversos quanto escolas, terreiros, anúncios de feijoada e até rituais católicos —, Pereira é também um dos maiores responsáveis pela preservação do lambe-lambe como linguagem artística popular. Para ele, valorizar práticas de rua é uma forma de resistir à elitização da arte e reafirmar sua função integradora.

Em cartaz até 19 de outubro, a exposição Horizonte, na Galeria Múltiplo, em Curitiba, reúne fotografias e trabalhos que percorrem sua trajetória. A mostra destaca homenagens a lideranças negras como João Cândido, André Avelino e Manuel Gregório, da Revolta da Chibata, além de séries recentes que exploram o descanso como gesto político.
Ainda que parte da produção esteja dentro da galeria, a lógica é sempre a da rua: tensionar a cidade como palco e disputa. Pereira leva ao chão e aos muros memórias que o Brasil insiste em apagar, ao mesmo tempo em que abre brechas de calma e respiro em meio ao automatismo urbano.
Em entrevista, o artista reflete sobre efemeridade, racismo estrutural, experiências pessoais e a potência do descanso como protesto.
JESS: Na exposição, você traz lideranças negras como João Cândido, André Avelino e Manuel Gregório. O que significa colocar essas histórias no chão e no muro, lugares de passagem e esquecimento, em vez de colocá-las apenas no “cubo branco” da galeria?
Acho que trabalhar com intervenção urbana é trazer sensibilidade pra um modelo de cidade que cada vez mais é pautado em automatizar o dia a dia. Uma arte, seja no chão ou num muro, é um desvio. Ela atravessa e ressignifica esse espaço que cada vez mais é feito pras coisas – e não para as pessoas. É uma disputa também. Um convite a dar sentido a um lugar que a gente se acostuma a passar sem perceber.
JESS: O lambe tem algo de efêmero: desbota, rasga, desaparece. Como essa materialidade dialoga com a experiência histórica de apagamento das pessoas negras no Brasil?
O lambe desaparece apenas materialmente, assim como as pessoas. Mas a cultura, os costumes, as palavras, as ideias, a memória, as histórias, os arquivos, enfim, tudo isso deixa vestígios e permanece. Toda experiência, seja oriental ou ocidental, tem base negra. Do cálculo matemático às batidas de funk. O lambe habita esse espaço também, é uma tecnologia simples e sofisticada, que está presente e viva na história há séculos, mesmo sendo efêmera.
JESS: A peça Jesus Pretinho é uma das suas mais conhecidas. O que ela já te devolveu de reações?
Eu não consigo mensurar. É um trabalho que tem vida própria. E uma obra que já entrou em prova escolar, filme, celebração da igreja católica, terreiro, bar, residências, restaurantes. Já serviu de proteção pra pessoas em situação de rua, já apareceu sem autorização em anúncios de feijoada, clipes musicais e projetos comerciais. É o que faz a arte de rua ser tão potente: tem agência própria. Pessoalmente abriu caminhos para outros trabalhos, pesquisas e experiências. Ao todo, desde que comecei a colar, em 2016, já foi reproduzida por mim mais de 7.000 vezes. É uma entrega minha à rua. E que sempre me devolve.
JESS: Você fala em atravessamentos pessoais nas suas obras. Pode compartilhar experiências que te marcaram de forma tão profunda que acabaram virando arte?
Acho que toda experiência e percepção que me sensibiliza acaba virando arte. Hoje misturo em minha pesquisa reflexões sobre hiperconexão, Internet, redes, bolhas sociais, classe, consumo e raça. E venho pensando muito na minha relação com tudo isso a partir do descanso, da necessidade dele e de quem tem direito a ele. Todas as minhas últimas produções fazem parte dessa reflexão, terminando em obras como SAIBA MENOS, Domingas, Descansar é um protesto. Dormir bem é uma rebeldia. Outras obras têm se tornado abstratas, como se fosse um descanso para os olhos e a mente, como as obras da série Pele de Rua.

JESS: A cidade é palco e disputa. Como o seu trabalho tensiona o racismo estrutural presente na própria arquitetura e na forma como o espaço urbano é organizado?
Acho que, pra além do trabalho, que hoje não aborda enfaticamente o racismo de maneira direta, ser um artista preto ocupando cada vez mais espaços, fazendo o que escolheu fazer já é o próprio tensionamento. Isso tudo junto a uma cena plural de diversas outras pessoas pretas, com distintas vivências e que estão ocupando, cada um à sua maneira, espaços de protagonismo. Não sei o que o futuro reserva, mas me preocupo em viver um dia de cada vez, bem, com qualidade, calma e leveza. E isso pra mim também significa tensionar. A estrutura social não nos quer emancipados e livres. Calmaria, felicidade e discernimento tensionam também.
JESS: No Instituto Lambes Brasil, você preserva e estimula uma técnica popular. Qual a importância política de valorizar práticas culturais de rua diante de uma lógica de exclusão racial e elitização da arte?
Embora o lambe seja secular, arte urbana é recente. Valorizar estas práticas é preservar um legado de um tipo de arte que vai contra uma lógica do sistema de arte, especificamente no sentido mercadológico: é livre, não exclusiva, barata, replicada em diversos lugares e, sobretudo, acessível. Não funciona como distinção social, funciona como integração. O Instituto preserva essa lógica, da arte e da cultura do lambe como uma via pública, não como um espaço privado.
Serviço
Exposição Horizonte, de Alberto Pereira
Galeria Múltiplo – Rua Kellers, 290, Arcadas de São Francisco, Curitiba
Até 19 de outubro
Visitação de quinta a domingo, das 15h às 18h
Entrada gratuita