O Quilombo da Restinga fica a menos de três quilômetros do pedágio da Lapa, no km 191 da BR-476, no Paraná. Essa distância curta — percorrida diariamente por famílias para acessar escola, UPA, supermercado, farmácia e trabalho — se transformou numa fronteira tarifária que limita a vida cotidiana, encarece deslocamentos básicos e, segundo especialistas e autoridades federais, configura violação de direitos humanos e exemplo concreto de racismo ambiental.
A praça já existia na concessão anterior, mas havia isenção parcial conquistada após anos de mobilização quilombola. Em 2023, quando o governo federal realizou o leilão do Lote 1 sem prever garantias específicas para comunidades tradicionais, a concessionária Via Araucária retomou a cobrança integral sem qualquer medida de mitigação. Desde então, famílias inteiras passaram a pagar para exercer o direito de ir e vir dentro da própria cidade.
A comunidade diz que não foi consultada “em nenhum momento”, embora a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) exija consulta prévia em casos similares. Um documento enviado à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) pelo vereador Bruno Bux (PT-PR), que ao lado da deputada federal Carol Dartora (PT-PR) também acionou o Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) e o Ministério da Igualdade Racial (MIR), descreve a situação como “violência racial e territorial”.
“Não é justo pagarmos para andar 2 km de asfalto”, resume a agricultora e artesã Cláudia Ferreira Santos Rocha, vice-liderança da Restinga e presidenta do Conselho Municipal de Igualdade Racial. Ela descreve um cotidiano em que até uma ida ao médico exige cálculo financeiro. “Somos obrigados a pagar porque precisamos acessar UPA, farmácia, supermercado. Nem conseguimos aproveitar uma promoção porque pensamos antes na tarifa. Não compensa ir”, diz.

Uma cidade separada por uma cancela
A audiência pública realizada em 4 de outubro de 2025 consolidou em ata uma lista extensa de irregularidades, depoimentos e denúncias. O prefeito, vereadores, defensores públicos e ministérios reconheceram que o pedágio se transformou numa barreira artificial, impedindo oito mil moradores, incluindo as comunidades quilombolas da Restinga, Feixo, Vila Esperança e o distrito da Mariental, de acessar sua própria cidade. O encontro foi ignorado pela ANTT e pelo Ministério dos Transportes, que não enviaram representantes.
O defensor público federal Nuno Castilho Coimbra da Costa explica que o direito à consulta livre, prévia e informada (CLPI) não só se aplicava ao leilão, como era essencial para garantir outros direitos fundamentais. “A praça impede o acesso das comunidades a uma miríade de direitos: o direito à cidade, o direito de ir e vir, à educação, à saúde. A violação também põe em risco um direito coletivo da própria comunidade à sua existência”, sintetiza.
A organização de direitos humanos Terra de Direitos, por meio da jurista Kathleen Tie, é categórica: “Racismo ambiental se manifesta quando políticas agravam desigualdades históricas. A posição da praça obriga quilombolas a pagar para acessar serviços básicos. É um ônus desproporcional que limita a circulação e aumenta o custo de vida.”
Tie também defende que a consulta prévia deve incluir o direito ao veto, previsto em protocolos comunitários, e classificou o modelo do Lote 1 como caso típico de “irresponsabilidade organizada”, marcada por estudos frágeis, ausência de protocolos e falhas no licenciamento.

Via insegura
A estrutura do pedágio, além de violar direitos, compromete a segurança viária. Dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) apontam que o número de mortes na Rodovia do Xisto aumentou 36% no primeiro semestre de 2025 em relação ao mesmo período do ano anterior.
A concessionária instalou ainda um Sistema de Atendimento ao Usuário (SAU) na entrada da Restinga, sem normas básicas de segurança. A base prejudica a captação de água da comunidade, aumentou o risco de acidentes e simboliza, para os moradores, uma infraestrutura voltada para veículos, não para pessoas. As falhas no “siga e pare” da Via Araucária — ausência de sinalização, manutenção precária e riscos de colisão — também foram denunciadas e registradas em ata.
O vereador Bruno Bux afirma que a situação tem solução. “O governo federal pode usar o sistema freeflow de imediato. Hoje, 6 mil pessoas estão privadas de acessar políticas públicas, correndo risco de vida, mas pagando por obras como o Contorno Norte de Curitiba”, aponta.
Ele também critica a lei municipal aprovada às pressas para dar 10 passagens mensais com tag subsidiada pela prefeitura. “O município está abrindo mão de R$ 3 milhões por ano em ISS, tirando de saúde e educação para pagar pedágio.” A ata registra que esse repasse municipal foi caracterizado como violação explícita de direitos humanos, porque retira recursos de áreas essenciais para subsidiar uma tarifa considerada injusta e ilegal.
A ata da audiência pública registra pressão unânime dos moradores pela isenção ampla, revisão da política tarifária e fiscalizações urgentes da ANTT. As falhas de manutenção, o aumento de mortes e a desigualdade tarifária entre praças foram destacados como parte de um modelo que penaliza comunidades rurais e transfere recursos para obras em regiões mais privilegiadas.
A vida cercada por uma cancela: cotidiano e resistência quilombola
A comunidade da Restinga já acumula 18 anos de limitação de circulação, com períodos em que moradores precisavam pedir autorização para atravessar a rodovia. A Defensoria Pública da União chegou a conseguir, em 2023, a suspensão do edital por violação à consulta prévia. Mas o TRF-4 derrubou a liminar, e o processo segue em análise.
Cláudia Ferreira, liderança do quilombo, conta que as famílias vivem submetidas a decisões que as excluem sistematicamente. “Somos limitados a tudo o que formos fazer no centro da cidade, até políticas públicas que são de direito”, fala.

O território não tem banco, hospital, mercado grande nem polos de emprego — e o pedágio transforma qualquer ida ao centro da Lapa em gasto e burocracia. O Colégio Agrícola fica a 800 metros da praça. Pais que recebem telefonemas da escola precisam avaliar se têm como pagar para atravessar e socorrer os filhos. “Se tiver mal-estar, tem que ir mesmo que doa no bolso”, lamenta Ferreira.
Moradores também contestam a narrativa do governo federal de que existe uma rota alternativa segura. A estrada do Caracol, apontada judicialmente como desvio possível, foi filmada pela Ouvidoria: alagada, estreita, íngreme e inviável para circulação regular. O ofício reforça que a via não pode ser considerada alternativa segura e que sua inclusão como solução no processo judicial constitui erro grave.
A denúncia enviada à ANTT lembra ainda que a Restinga foi certificada pela Fundação Palmares em 2006 e segue invisibilizada pelo Estado, sem avanço no processo de titulação do território — o que agrava o histórico de violência territorial.

Poder público se mexe devagar
Em manifestação enviada à reportagem, a ANTT afirmou que a consulta prévia não ocorre antes do leilão, mas durante o licenciamento ambiental, quando a concessionária elabora os projetos executivos e identifica impactos concretos. Disse também que o TCU reconhece a possibilidade de realizar a consulta concomitantemente à Licença Prévia. Para a Agência, a outorga em si não gera impactos diretos e, portanto, não exigiria a consulta naquele momento.
A ANTT acrescentou que, na fase atual, a responsabilidade pela CLPI e pelo licenciamento é da Via Araucária, sob acompanhamento da Agência. Sobre o pedido feito pelo vereador Bruno Bux, a ANTT informou apenas que ele “está em análise”.
O Ministério dos Transportes não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Enquanto isso, os órgãos de direitos humanos apontam violações. Em resposta oficial, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reconheceu “violação de direitos humanos” e “prejuízo evidente às comunidades” pela ausência de consulta prévia. Informou ainda que já houve reunião com o MIR e a ANTT sobre o caso, sem medidas concretas até agora.
O Ministério da Igualdade Racial chegou à mesma conclusão e classificou a situação como racismo ambiental e institucional. “As comunidades quilombolas estão sendo penalizadas duplamente. Primeiro com a violação do direito de consulta prévia, e segundo, obrigadas a pagar para acessar a sede do município”, disse a pasta. O MIR afirma ter acionado o Incra para avaliar o ingresso urgente de ação judicial pedindo a suspensão imediata da cobrança, com base em precedente do STF.
A pasta também informou que pretende recomendar, no âmbito do governo federal e especialmente no PAC, que a consulta prévia seja condicionante obrigatória em futuros projetos de concessão ou licenciamento, para evitar repetição de casos como o da Lapa.
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