Quando tive minha primeira conversa com Tom Goodhead, em 2018, eu não imaginava que aquele encontro poderia mudar completamente o rumo da minha vida. Eu estudava para concursos públicos e me preparava para seguir uma carreira estável. Mas a conversa girou em torno de algo impossível de ignorar: o maior desastre socioambiental da história do Brasil e a possibilidade de fazer algo concreto diante dele.
Foi assim que me juntei à luta dos atingidos e, com uma equipe incansável, comecei uma jornada que já dura oito anos, marcada por desafios, aprendizado e, acima de tudo, pela convivência com pessoas que perderam tudo, mas não perderam a capacidade de lutar por justiça.
Em 2018, ingressamos na Justiça inglesa com uma ação coletiva representando mais de 200 mil vítimas do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, contra a mineradora BHP, a matriz da BHP Brasil, uma das controladoras da Samarco. Desde então, mais de 600 mil clientes aderiram à ação, tornando-a a maior ação coletiva do mundo, e uma das mais complexas da história jurídica recente.

O caso busca algo que deveria ser fácil, mas ainda é revolucionário: responsabilizar uma empresa global pelos danos que suas decisões causaram em outros países. Se os lucros atravessam oceanos, a responsabilidade também deve atravessá-los. É disso que se trata o julgamento que aguarda decisão nas próximas semanas no Tribunal de Londres: um julgamento que pode redefinir a forma como o mundo lida com abusos corporativos e injustiças transnacionais.
O julgamento em Londres não é apenas sobre Mariana. É sobre até onde vai a responsabilidade de empresas globais que lucram em países em desenvolvimento e deixam para trás destruição e silêncio. É sobre o futuro do direito transnacional e a coragem de aplicar a lei de forma igual para todos.
A caminhada até aqui esteve longe de ser simples. Enfrentamos resistência de todos os lados. Houve tentativas de encerrar o processo, de limitar sua abrangência, de deslegitimar nossa atuação e de impor acordos por valores irrisórios. O uso abusivo de instrumentos jurídicos para desgastar quem busca responsabilizar grandes empresas tem um nome: lawfare. E nós o enfrentamos todos os dias.

Dez anos depois, a impunidade não é apenas fruto da inércia das mineradoras, mas também de um Estado que escolheu se omitir. Governos, agências e tribunais que deveriam proteger as vítimas acabaram por proteger os responsáveis pela tragedia.
Desde o início, porém, nosso propósito foi claro: garantir que cada vítima fosse ouvida. Em um contexto em que a reparação vinha sendo tratada como um exercício de planilha, danos encaixados em categorias, compensações pré-fixadas, escolhemos fazer diferente. Perguntamos a cada pessoa o que ela havia vivido e apresentamos isso, individualmente, à Justiça.
Essa trajetória foi construída em equipe, com pessoas comprometidas em ouvir, registrar e traduzir juridicamente as histórias das vítimas, sem jamais perder de vista o sentido humano da reparação. Essa é a essência do nosso trabalho: lembrar que por trás de cada número existe uma vida, e por trás de cada vida, uma história que precisa ser contada.

E ninguém poderia contar essas histórias que não as próprias pessoas atingidas. Nenhum relatório, decisão judicial ou laudo pericial poderia traduzir o que significou perder uma casa, um território, um rio. Por isso, sempre fizemos questão de que as próprias lideranças das comunidades falassem por si em audiências, encontros e também fora do país.
Tive o privilégio de acompanhar e assessorar as lideranças durante viagens à Inglaterra e à Austrália para denunciar o que viveram e buscar aliados entre organizações internacionais, parlamentares, investidores e acionistas das mineradoras. Cruzaram fronteiras em busca de justiça porque sabiam que, no Brasil, suas vozes sempre foram silenciadas.
Hoje, dez anos depois do rompimento, as marcas do desastre continuam abertas. Há reassentamentos inacabados, rios que ainda não se regeneraram, modos de vida que jamais serão plenamente reconstruídos. É vergonhoso que tantas promessas de reparação ainda não tenham saído do papel. É inaceitável que, uma década depois, a reparação siga sendo uma promessa e não uma realidade.

Mas também há algo que resiste: a força para lutar por justiça. Ela está nas comunidades que não se calaram, nos advogados e advogadas que acreditaram ser possível desafiar gigantes, e em cada pessoa que, mesmo diante de todas as adversidades, decidiu não aceitar o esquecimento. A sociedade brasileira não pode normalizar a impunidade. O silêncio coletivo é o maior aliado da repetição desses crimes.
Mariana não é passado. Mariana é o espelho de um país que ainda decide entre o lucro e a vida. Que os próximos dez anos não sejam mais uma década de esquecimento.
BookmarkFelipe Hotta
Fundador do Hotta Advocacia e sócio do Pogust Goodhead
