Um dos efeitos da ascensão da extrema-direita em todo o mundo é o crescimento da intolerância às diferenças. No Brasil, um dos alvos prediletos dessa intolerância são as religiões de matriz africana. Entre 2021 e 2024, o país registrou um aumento de 329,9% no número de denúncias de ofensas e ataques a pessoas por causa das suas crenças religiosas, segundo o Ministério dos Direitos Humanos. Só no ano passado, o Dique 100 recebeu 2.472 denúncias de intolerância religiosa. Um aumento de quase 67% em relação a 2023, quando foram feitos mais de 1.480 registos. Quase mil casos a mais.
As vítimas mais frequentes desses ataques são justamente os locais de adoração e celebração da umbanda e do candomblé, além de seus frequentadores e praticantes. Em 2022, uma pesquisa coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras ouviu representantes de 255 terreiros de todo o país. Quase a metade relatou até cinco ataques em dois anos desde 2021.
Cultura popular

Mesmo sendo desalentador, esse cenário de violência e discriminação racial e religiosa não intimida quem já se acostumou a lutar. E os focos mais fortes de resistência partem, muitas vezes, da cultura popular e ancestral centenária.
É de Sete Lagoas, cidade localizada a cerca de 70 quilômetros de Belo Horizonte (MG), que vem um desses polos e expoentes. Com três álbuns no currículo, a banda Congadar surgiu em 2013, da união da banda autoral de rock Ganga Bruta, de Marcão Avelar (baixista/produtor executivo), e um grupo já chamado Condagar, focado em cultura popular, ativo desde 2007 e liderado por Carlos Saúva (Voz/Caixa). Completam a formação atual, de sete integrantes: Giuliano Fernandes (guitarra e produção musical), Filipe Eltão (voz, caixa e percussão), Wesley Pelé (voz, caixa e percussão), Igor Félix (guitarra) e Sérgio DT (bateria).
Raiz nos quilombos
O som do grupo combina rock psicodélico com ritmos derivados de folias, cantos, danças e batuques em instrumentos de percussão chamados “caixas”, que ecoam as festas e celebrações de crenças e práticas religiosas de origem africana com raízes nos quilombos do século 18. O Congo (ou Congado) é uma derivação da congada, ligada ao Reinado e à história de Chico Rei – líder congolês escravizado e trazido ao Brasil por volta de 1.740, onde comprou sua liberdade e a de outros escravos.
Saúva conta que passou a infância no bairro Garimpo (Santa Luzia), em Sete Lagoas, local que ele identifica como o berço da cultura popular da cidade, onde cresceu em contato diário com as manifestações negras.
E é um bairro onde nasce as primeiras guardas de Congo. O meu contato com essa cultura popular foi muito precoce
explica o percussionista.
Clube da Esquina e Wilco

Além das manifestações ancestrais, a receita do Congadar também tem espaço para o “Clube da Esquina”, classic rock e rock alternativo.
Comprei minha primeira guitarra por causa do Nels Cline (guitarrista da banda indie estadunidense Wilco)
conta o guitarrista Giuliano Fernandes, que tocou por dez anos com o compositor Lô Borges, uma das principais figuras do Clube da Esquina, incluindo em shows com outra delas, entre elas Milton Nascimento.
Diferenças em relação ao manguebeat
À primeira vista, os desavisados podem achar que a música do Congadar tem semelhanças com o Manguebeat dos pernambucanos da Nação Zumbi. Mas quem ouve com mais atenção percebe as diferenças. As “caixas”, nome dos tambores usados na congada e pela banda, podem parecer com as “alfaias” da Nação, mas tanto sua construção quanto os timbres, batidas e ritmos têm características próprias.
As nossas caixas têm origem nas caixas do Candomblé, que também são usadas no Jongo
esclarece Saúva.
Além disso, ao contrário da Nação Zumbi, a percussão da Congadar fica à frente da banda, e não atrás.
Como toda a história da cultura negra no Brasil, o congado é transmitido pela oralidade, não estando registrado em livros de história, o que é lamentável, mas revela a ancestralidade
define Marcão.
Política na música e nos palcos

A Congadar tem posicionamentos políticos e sociais muito claros. O envolvimento da banda com a cultura negra e as manifestações religiosas africanas é natural, especialmente diante do racismo no Brasil. Segundo Saúva, as cantigas e a percussão evidenciam como o racismo religioso e a repressão moldaram essas formas da arte popular, que se tornaram um ato de resistência cultural.
E o próprio dominador proibia que essas cantigas fossem cantadas numa língua que não fosse o português
lembra.
Em tempos de crescimento da extrema-direita, eles consideram que essa resistência é ainda mais necessária.
Esse pessoal, de certa forma, perdeu a vergonha de se dizer racista. A coisa ficou meio escancarada
avalia Marcão Avelar.
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O bolsonarismo sempre existiu no Brasil. Ele só precisava de um Bolsonaro pra poder representá-lo
resume Giuliano.
Esse posicionamento da Congadar não está só no resgate musical da cultura popular ou nas letras, mas também no palco.
A gente sempre fala em palco. Saúva vai lá e faz o seu discurso a respeito do racismo, da violência policial, violência contra as mulheres
confirma o guitarrista.
Lançando seu mais recente álbum, “Aprendi com meus antepassados”, a banda relata que o espaço para manifestações culturais não hegemônicas é escasso tanto na mídia, quando para apresentações ao vivo. Eles contam que o governador de Minas, Romeu Zema (Novo) sucateou a Secretaria de Cultura, e aparelhou a rádio estatal Confidência, que antes tocava música independente.
A Congadar sobrevive por meio da venda de vinis e CDs, shows em pequenos locais e projetos aprovados em leis de incentivo.
BookmarkCom as 100 mil audições nas plataformas de streaming, nós ganhamos R$ 65. Um único vinil vendido já dá um lucro igual
completa o baixista Marcão.
