A voz de Gal Costa se calou em novembro de 2022, mas continua ecoando nas faixas do álbum “As Várias Pontas de Uma Estrela (Ao Vivo no Coala)”, lançado pela gravadora Biscoito Fino na última sexta (17). Gravado no Memorial da América Latina, durante o Coala Festival, o registro marca a última apresentação da cantora e chega às plataformas digitais como um documento histórico de uma das maiores intérpretes da música brasileira.
Um registro histórico da despedida
Naquela noite de 17 de setembro de 2022, Gal subiu ao palco acompanhada de uma banda enxuta — Fábio Sá (baixo), Limma (teclados) e Vitor Cabral (bateria) — sob a direção de Marcus Preto, parceiro e produtor de seus últimos trabalhos. O público, formado em sua maioria por jovens, testemunhou um show que percorreu cinco décadas de carreira, de seus primeiros passos na Tropicália às canções mais recentes, lançadas nos anos 2010.
A apresentação começou com uma versão vibrante de “Fé Cega, Faca Amolada” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos). A voz de Gal, mais contida e rouca, mostrava sinais do tempo, mas o carisma permanecia intacto. O público respondeu em coro, transformando o espetáculo em um encontro entre gerações.
Na sequência, vieram “Hotel das Estrelas” (Jards Macalé e Duda Machado) e o hino tropicalista “Divino, Maravilhoso” (Caetano Veloso e Gilberto Gil), reafirmando o espírito inquieto da cantora. O roteiro, adaptado especialmente para o festival, misturava clássicos e composições mais recentes, mantendo o ritmo e a atenção da plateia.
Clássicos revisitados e novas parcerias
O setlist trouxe pérolas de diferentes fases: “Dom de Iludir” (Caetano Veloso), “Nada Mais” — versão de Ronaldo Bastos para “Lately”, de Stevie Wonder —, “Paula e Bebeto” (Milton e Caetano) e “Desafinado” (Tom Jobim e Newton Mendonça). Cada faixa resgata um pedaço da história da música brasileira, costurada pela voz de quem foi uma de suas maiores intérpretes.
Gal também abriu espaço para compositores de novas gerações. Cantou “Quando Você Olha pra Ela” (Mallu Magalhães) e “Palavras no Corpo” (Silva e Omar Salomão), reafirmando sua eterna curiosidade artística e disposição para dialogar com o presente.
Nos momentos de parceria, o palco se tornou ainda mais simbólico. Rubel e Tim Bernardes, ambos nascidos em 1991, dividiram o microfone com Gal em números de intensa emoção. Rubel cantou “Como 2 e 2” e “Tigresa”, de Caetano Veloso; Tim interpretou com ela “Negro Amor”, versão em português de Bob Dylan feita por Caetano e Péricles Cavalcanti, e “Vapor Barato”, clássico de Jards Macalé e Waly Salomão. Os dois voltaram juntos para “Baby”, canção que sintetiza toda a ousadia tropicalista que Gal ajudou a moldar.
Falando em tropicalismo, no repertório há espaço tanto para a irreverência tropicalista quanto para a ternura dos anos 1980, quando Gal emplacou sucessos como “Lua de Mel” e “Sorte”, também revisitadas no show.
O encerramento, com “Um Dia de Domingo” (Michael Sullivan e Paulo Massadas) e “Brasil” (Cazuza, Nilo Romero e George Israel), soou como uma síntese perfeita da artista: intensa, política e afetiva. Em meio aos aplausos, Gal pediu ao público que votasse “com sabedoria” nas eleições de 2022 — e, num gesto simbólico, ergueu a mão formando o “L” de Lula.
Um show de despedida sem saber que era
Naquela noite, ninguém imaginava que aquele seria o último show de Gal Costa. Aos 77 anos, a cantora planejava apresentações no festival Primavera Sound e uma turnê pela Europa. O destino, no entanto, interrompeu a trajetória da artista dois meses depois, em 9 de novembro de 2022, vítima de um infarto.
Gal completaria 80 anos em 2025, e o lançamento do álbum funciona como um tributo definitivo à sua carreira e como um testemunho do impacto que ela continua exercendo sobre a música brasileira.
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Técnica e emoção

O material foi cuidadosamente restaurado pela Biscoito Fino em parceria com a Vudoo Filmes. A mixagem de Duda Mello e a masterização de Alexandre Rabaço garantem uma qualidade surpreendente para um show que não havia sido captado com fins de lançamento.
As imagens, revitalizadas com recursos de inteligência artificial, preservam a força visual da apresentação e a aura mística que cercava Gal em cena.
A capa, assinada por Omar Salomão, traz os icônicos lábios vermelhos da cantora — um símbolo da sensualidade e do poder que ela emanava no palco.
Canto do cisne
“As Várias Pontas de Uma Estrela (Ao Vivo no Coala)” é mais que o registro de um show: é o retrato de uma artista em paz com sua história, dona de uma presença que atravessou modas e décadas. A voz pode já não soar tão cristalina quanto nos anos 1970, mas a emoção segue intacta.
No fim, o que fica é o sentimento de gratidão. Gal se despediu do palco do mesmo modo que viveu nele: com coragem, entrega e uma rara capacidade de transformar cada nota em poesia. Um último ato à altura de quem foi — e continua sendo — uma das vozes mais luminosas do Brasil.
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