“O poder corrompe mais do que o ferro enferruja.”
— William Shakespeare, Macbeth, Ato I, cena VII
Há muito tempo, os Estados Unidos vendem ao mundo a farsa moral da chamada “guerra às drogas”. Sob o pretexto de combater o tráfico, a política norte-americana, desde Nixon, serviu para justificar golpes de Estado, financiar ditaduras e manter o controle geopolítico sobre a América Latina.
Hoje, sob a liderança de Donald Trump, essa farsa se metamorfoseou em uma cruzada autoritária de alcance global — e o que ela combate, na verdade, não são as drogas, mas a soberania dos povos.
Trump ressuscitou o espírito da Guerra Fria em sua forma mais vulgar: maniqueísta, moralista e hipócrita. Seu governo apontou o dedo para Gustavo Petro, da Colômbia, e para Nicolás Maduro, da Venezuela, enquanto flertava abertamente com delinquentes políticos como Bolsonaro, Uribe, Milei, Duque e Netanyahu.
A retórica de Trump sobre o “narcotráfico” serve, na realidade, para encobrir a velha obsessão imperial dos Estados Unidos: manter sob tutela as riquezas naturais e as rotas energéticas da América Latina, em especial o petróleo venezuelano.
Não há nada de novo no script — exceto a brutalidade performática e a ausência total de disfarces. Os ataques a embarcações no Caribe e as sanções seletivas impostas a países latino-americanos repetem, em versão digital e midiática, o mesmo padrão de intervenção dos anos 70: o uso da força e da propaganda para subjugar qualquer tentativa de autonomia regional.
É a velha doutrina Monroe travestida de política de segurança. A diferença é que agora Trump e seus vassalos contam com uma arma mais poderosa do que as bases militares: as plataformas digitais.
O neofascismo de plataforma, que chamo de Falsolatria, é a religião da mentira sistematizada em algoritmos. Como alerta Hannah Arendt em Crises da República,
A substituição das verdades factuais por mentiras não visa fazer o povo acreditar numa mentira, mas fazer com que já não se acredite em nada. Um povo que já não consegue distinguir entre o verdadeiro e o falso acaba incapaz de distinguir entre o certo e o errado.
É um culto transnacional à manipulação e ao ressentimento, patrocinado por bilionários do Vale do Silício e disseminado pelas redes sociais como uma droga psíquica — viciante, excitante e destrutiva.
Essa droga é a verdadeira epidemia. E ela atende pelo nome de extrema-direita.
A nova “internacional fascista” — que vai de Trump a Milei, passando por Vox, Bolsonaro, Orbán e Netanyahu — opera com a lógica dos cartéis: coordena-se por redes subterrâneas, financia campanhas e espalha desinformação como quem trafica ódio.
Sob a capa de combater o crime e o comunismo, reproduz as estruturas da criminalidade que diz enfrentar. A diferença é que seus “produtos” não são cocaína ou maconha, mas medo e ignorância.
A América Latina volta, assim, a ser palco de uma disputa imperial, mas em um cenário de mundo multipolar. A emergência de novas potências — como China e Rússia — ameaça o monopólio de influência dos Estados Unidos, e é por isso que a retórica da “guerra às drogas” reaparece com tanto fervor: ela é a linguagem de um império em decadência tentando preservar seu domínio.
Não se trata, porém, de escolher entre Washington, Pequim ou Moscou. Nem a China nem a Rússia são modelos de democracia; ambas praticam, a seu modo, autoritarismos que restringem liberdades e perseguem dissidentes.
Quando apresentei, ainda como deputado, meu projeto de lei para regulamentar a produção e comercialização da cannabis, o que eu propunha era mais do que uma mudança na política de drogas. Eu propunha uma mudança de paradigma: sair da lógica da guerra e do encarceramento em massa — a mesma lógica que alimenta o racismo estrutural e o autoritarismo — e adotar uma abordagem de saúde pública, cidadania e reparação.
Hoje vejo como esse debate, travado no Brasil há quase uma década, ressoa na voz de líderes latino-americanos como Gustavo Petro, que tem coragem de denunciar a hipocrisia norte-americana e propor uma política de drogas centrada em dignidade humana e soberania.
Mas enquanto essas vozes tentam abrir caminhos, as figuras da velha ordem reacionária continuam a agir como porta-vozes de Trump e seus interesses. Como observa Timothy Snyder em Sobre a tirania: vinte lições do século XX,
O caminho para o autoritarismo não é pavimentado de grandes atos, mas de pequenas concessões diárias. Ele começa na mesa de jantar e termina nas ruas.
Essa banalidade do mal também se manifesta em vídeos gerados por IA em que Trump se apresenta como rei, jogando impropérios sobre críticos — uma performance de poder absoluto e teatral.
A droga ilícita, portanto, não é a maconha que os jovens fumam nem a coca que os camponeses cultivam por sobrevivência. A droga ilícita é o ódio que a extrema-direita injeta nas veias da sociedade. É o veneno do nacionalismo racista, da misoginia travestida de moral e da homofobia santificada em nome de Deus.
É o alucinógeno que faz milhões acreditarem que a desigualdade é virtude, que a violência é justiça e que o império decadente ainda pode ditar o destino dos povos. Contra essa droga, não há polícia que baste.
O que há é a necessidade urgente de desintoxicação democrática: de informação, de empatia, de política real.
E, sobretudo, de coragem para dizer o óbvio — o que muitos preferem calar: a guerra às drogas é a guerra contra nós.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor, entre outros livros, de Falsolatria (2024, Editoras Nós e Sesc SP) e O anonimato dos afetos escondidos (2025, Tusquets).
