Em uma cerimônia solene realizada no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o Estado brasileiro emitiu um simbólico ato de reconhecimento e reparação histórica ao entregar certidões de óbito retificadas de 102 mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar (1964-1985). O evento, organizado com o apoio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Conselho Nacional de Justiça e do Registro Civil, representou a oficialização da responsabilidade estatal por essas mortes — um gesto tardio, porém significativo, de busca pela verdade e justiça.
Entre os nomes cujas certidões foram retificadas estavam figuras emblemáticas da resistência, como o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva; o líder da ALN Carlos Marighella; o jornalista Vladimir Herzog; o estudante Alexandre Vannucchi Leme; e os militantes do PCdoB Helenira Resende, André Grabois e Ângelo Arroyo. Um a um, seus nomes foram chamados, e a plateia respondeu: “Presente!” — reafirmando a memória que o regime tentou apagar.
Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, emocionou ao relatar a longa jornada das famílias em busca de reconhecimento: “Desde o primeiro dia da prisão e da morte do meu pai, estamos em busca dessa verdade. A democracia demorou a chegar, o governo federal demorou a assumir a culpa, e agora, finalmente, temos o atestado de óbito com os fatos reais”.
A ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvia Almeida, destacou a importância do ato para a reconstrução da memória nacional: “Hoje é um dia central para lembrar aqueles que lutaram pela democracia que hoje temos — tantas vezes ameaçada, mas que sobrevive”. Ela reconheceu que o gesto chega tardiamente, fruto da luta incansável de familiares e sobreviventes.
Um passo na direção da cura
Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ressaltou que as certidões vão além do aspecto burocrático: “Elas representam uma tentativa de fazer o caminho contrário ao do desaparecimento”. Citando Ulisses Guimarães, que declarou ter “horror e nojo à ditadura”, ela criticou a resistência de setores do Estado, como o Ministério da Defesa, em abrir seus arquivos. “Ainda buscamos a verdade integral. Não desistimos”, afirmou.
Gonzaga enfatizou o caráter reparatório do documento: “Podem representar um passo fundamental em um longo caminho de cura emocional, um reencontro com a memória”.
Um coro pela democracia
Representantes de entidades estudantis, acadêmicas e de direitos humanos uniram-se em um só coro para celebrar a conquista e alertar para os riscos que a democracia ainda enfrenta. O encerramento foi marcado pelo bordão “Ditadura nunca mais!”, ecoado por todos os presentes — um lembrete de que a luta pela memória, verdade e justiça permanece urgente.
A solenidade reafirmou, assim, a importância de enfrentar o passado para construir um futuro em que violações de direitos humanos não se repitam. Como declarou a ministra Sílvia Almeida, “somos um país feito de luta, que não se cala mais diante dos horrores do autoritarismo”.
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