Por Ruy Samuel Espíndola*
Há textos que envelhecem como papel esquecido numa gaveta. Outros, como brasas, mantêm aceso o fogo da esperança comum. A Constituição de 1988 pertence a esta segunda espécie: nasceu como pacto, cresceu como promessa e, nestes 37 anos, resistiu como trincheira.
Foi escrita depois de um longo inverno autoritário, quando a palavra “Constituição” voltou a significar futuro e não silêncio.
Ela se ergueu como arquitetura política e moral, abrigando sob seu teto generoso uma pluralidade de vozes, convicções, medos e utopias, ecoando Tancredo Neves, em discurso de 15.01.1985:
Brasileiros, neste momento, alto na História, orgulhamo-nos de pertencer a um povo que não se abate, que sabe afastar o medo e não aceita acolher o ódio. A nação inteira comunga deste ato de esperança. Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. (…). Não há Pátria onde falta democracia. (…). A Pátria é escolha, feita na razão e na liberdade. (…). Assim sendo, a Pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente.
Tinha, desde o berço, a marca dos compromissos e das imperfeições, mas também a força rara das obras que nascem quando um povo decide, em uníssono, respirar liberdade. E foi nesse espírito que, em 5 de outubro de 1988, sob a presidência da Assembleia Constituinte que a gestou, Ulysses Guimarães pronunciou o discurso que a abençoou e profetizou seu destino. Suas palavras ecoam até hoje:
Quando, após tantos anos de luta e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações (…)’.
Desde então, essa Carta não foi apenas um conjunto de artigos: foi bússola e escudo. Foi gramática de direitos e idioma de resistências. Foi palco de debates intensos, onde moralistas e constitucionalistas se enfrentaram, onde a vontade popular e a autocracia judicial mediram forças, onde a política tentou, muitas vezes, domesticar a Constituição – quando ela, altiva, em todos esses momentos, respondeu com suas regras e princípios:
Aqui, não!.
As Constituições são seres vivos, mas de respiração lenta. Não marcham no ritmo frenético das paixões políticas; avançam, antes, na cadência mais profunda da cultura, das instituições e dos gestos cotidianos. Por isso, seus princípios resistiram a crises econômicas, a sucessivas alternâncias de poder — foram nove eleições presidenciais e dois impeachments, entre os governos Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro —, a discursos inflamados e, por fim, à mais grave tentativa de ruptura democrática desde o fim da ditadura militar de 1964: os fatos condenáveis ocorridos entre julho de 2021 e janeiro de 2023, julgados historicamente em 11 de setembro de 2025, pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal n. 2668, condenando o ex-Presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.
Enquanto projetos de exceção tentavam converter a legalidade em obstáculo, a Constituição permaneceu de pé não por acaso, mas porque houve quem a lesse, a interpretasse e a defendesse com palavras, votos, decisões e acórdãos, sustentados por coragem civil. Sua força não residia apenas no texto, mas na vontade constitucional de uma comunidade que, embora dividida em tantos aspectos, soube dizer não à aventura autoritária.
Cada princípio constitucional é, no fundo, uma corda invisível que impede a queda no abismo. Cada garantia processual é um lembrete de que o poder, mesmo quando vestido de virtude, precisa de freios. Cada direito fundamental é uma história de resistência que nos antecede e que exige continuidade.
Por isso, a Constituição de 1988 é o nosso grande habeas corpus coletivo: instrumento silencioso que resguarda a nação dos cárceres políticos, dos moralismos de ocasião e dos messianismos extremistas que, insuflando ódios previamente cultivados, prometem uma salvação forjada no medo, em troca de liberdades que jamais estiveram verdadeiramente em risco.
Ela é o sopro longo da democracia, mais forte que o clamor breve das multidões inflamadas.
Celebrar 37 anos de Constituição não é apenas comemorar uma data jurídica de refundação de nossa democracia prenhe de esperanças após anos de trevas e incertezas vividos entre 1964 e 1985.
É renovar um pacto espiritual com a ideia de que liberdade, igualdade e justiça não são estados naturais: são obras humanas, frágeis, exigentes, cultivadas no cotidiano.
A Constituição não se defende sozinha. Precisa de intérpretes fiéis, críticos vigilantes, advogados combativos, magistrados serenos, professores atentos, cidadãos conscientes. Precisa que, em meio ao barulho do tempo, alguém continue a escutá-la.
Porque ela — essa Carta viva — continua a nos perguntar, a cada geração:
Vocês ainda querem democracia?
E devemos responder sempre, emulando o grande Ulysses Guimarães, no trigésimo sétimo aniversário dessas palavras ordenantes do nosso futuro pós 1988:
A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.
Desterro, “Ondina de Cruz e Souza”, Ilha Capital de SC, 05.10.25, 19h05m.
*Ruy Samuel Espíndola é Advogado publicista, Professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral, Mestre em Direito Público UFSC, Membro das Comissões de Direito Constitucional da OAB-SC e da OAB/RJ, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), do Instituto dos Advogados de SC (IASC), do Instituto de Direito Administrativo de SC (IDASC) e da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (ACALEJ), cadeira 14, Patrono Acácio Bernardes
