Nos últimos meses vem se desenvolvendo mais um capítulo do embate do Supremo Tribunal Federal, com a tentativa de aprofundar, a partir de sua jurisprudência, a reforma trabalhista mitigando a proteção social garantida pela Constituição e leis do trabalho.
Apesar de um pouco ofuscada pelo julgamento dos personagens centrais da tentativa de golpe de Estado no país, a suspensão da tramitação de todas as ações trabalhistas envolvendo a controvérsia de validade jurídica da “pejotização”, determinada pelo Ministro Gilmar Mendes, mereceu destaque nos meios jurídicos e de comunicação.
O neologismo “pejotização” é bastante usual no mercado de trabalho e também é encontrado em peças processuais e textos jurídicos. Contudo, pode não ser bem compreendido pela maior parte da população, em especial, por quem vive da venda da sua força de trabalho. Afinal, o que seria “pejotização” ou “pejotizar”?
O termo refere-se a uma mudança na modalidade de contratação do trabalhador. Abandona-se o formato convencional, cujo contrato é celebrado diretamente com a pessoa (natural, física) que prestará os serviços, substituindo-a por uma pessoa jurídica que pertence ao trabalhador. Para ilustrar, na forma tradicional a relação jurídica se dará com o empregado Fulano de Tal. Ao torná-la com PJ (pessoa jurídica), este mesmo empregador contratará a empresa Fulano de Tal MEI.
Ao contrário do que se pode imaginar, não se trata de mero substituição de uma das partes do contrato da pessoa natural para a pessoa jurídica, mas, sim, de um completo afastamento de princípios e regras de direito que deveriam regular a relação contratual. Isso porque a contratação da pessoa física importará na celebração de um contrato de emprego, submetendo-o às regras de Direito do Trabalho. Já sendo pessoa jurídica, há uma mudança na natureza da relação passando a ser regida pelo Direito Civil.
Se, no primeiro caso, a parte contratada terá direito ao recebimento de salários, adicionais para o trabalho em situação mais gravosa, férias com adicional de 1/3, 13º salários, FGTS, entre outros; no segundo, receberá exclusivamente o que estiver previsto em contrato, o que comumente se restringe aos salários e uma gratificação de final de ano equivalente ao 13º salário.
Resta clara a desvantagem em ser contratado sob esta modalidade, à exceção de diminuir a contribuição previdenciária e o valor de tributos pagos pelo trabalhador, isto é, o erário público também é vítima desta forma de contratação, já que ela impacta na arrecadação para a Previdência Social e Receita Federal.
Vale demonstrar: em um contrato de emprego, Fulano de Tal recebendo dois salários mínimos nacionais (R$ 3.036,00), por mês, contribuiria, mensalmente, com o valor de R$ 261,45 ao INSS, a ele adicionando-se a cota da empresa, R$ 607,20 (desconsiderando outros tributos também incidentes sobre a folha), o que totalizaria R$ 868,65 mensais.
Em idêntica base financeira, mas em relação contratual “pejotizada”, se arrecadaria R$ 75,90 ao INSS, pagos através de MEI, sem incidir qualquer contribuição previdenciária à empresa contratante, resultando uma diferença de R$ 792,75 em valores nominais ou de quase 1150% em desfavor da Previdência.
Para relações contratuais com renda superior, além da redução do valor de INSS também haverá a diminuição dos tributos arrecadados, já que o regime tributário adotado não se adequará à renda de pessoa física, mas às pessoas jurídicas, oscilando normalmente entre a tributação de MEI e Simples Nacional e importando pagamento de carga de impostos bem inferior à efetivamente devida.
É interessante notar que nem todo contrato de prestação de serviços celebrado com trabalhador/PJ, por assim dizer, resultará em fraude. Há, por óbvio, diversas situações em que a relação jurídica formada entre quem contrata e quem presta trabalho não será a de emprego, por ausência de, ao menos, um dos requisitos essenciais para caraterização do vínculo empregatício (pessoalidade, subordinação, não-eventualidade e onerosidade).
Haverá fraude, todavia, quando – apesar de presentes tais requisitos– a relação empregatícia for dissimulada em um contrato de outra natureza jurídica, como ocorre, na maior parte dos casos, com a “pejotização”, quando um trabalhador é travestido de pessoa jurídica.
Em pronunciamentos recentes, alguns ministros do STF se manifestaram no sentido de compreenderem que a melhor solução à controvérsia seria a objetividade contratual, isto é, deveria prevalecer as condições contratadas, independentemente de respaldadas pela realidade fática ou de se traduzirem em mera ficção contratual.
Se tal entendimento vier a prevalecer, uma de suas possíveis consequências já pode ser constatada nas ofertas de vagas de trabalho. Não é necessário se demorar muito na navegação por sites especializados para se deparar com vagas de trabalho em modalidade de PJ.
Como exemplo, são encontradas diversas ofertas para a função de assistente administrativo, com remuneração entre 2 e 4 mil reais mensais, para 40 ou 44 horas semanais de trabalho, com previsão de executar atividades de preenchimento de documentos, elaboração de relatórios e planilhas, atendimentos a clientes e/ou fornecedores, enfim, atividades de suporte, de caráter eminentemente subordinado, afastando qualquer possibilidade de compreender tratar-se alguma autonomia em sua execução.
O que há pouco tempo seria compreendido como um anúncio despudorado de uma violação escancarada de direitos, hoje, aparenta normalidade, à espreita da decisão do Supremo Tribunal Federal a institucionalizar essa fraude.
De acordo com a PNAD contínua, no quarto trimestre de 2024 o rendimento médio alcançado pelo trabalho foi de R$ 3.343,00 mensais. Portanto, cabe asseverar que grande parte da população brasileira, em idade para trabalhar e ocupada, possui renda mensal de até 3 salários mínimos, inserindo-se na faixa de receita aplicável ao MEI.
Não há como deixar de mencionar que uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal a conferir legalidade à “pejotização”, sem lhe impor qualquer restrição, como tal forma de contratação, como mencionado acima, permitirá uma redução de, no mínimo, 20% nos custos sobre a folha de pagamento, gerada somente pelo não recolhimento da contribuição previdenciária patronal sobre os salários, sem ainda considerar os direitos sociais que possuem expressão econômica sonegados do trabalhador.
Com este cenário não é difícil imaginar qual será a modalidade de contratação preferida pelos setores empresariais, nem arriscado afirmar que ela predominará no mercado de trabalho formal brasileiro, tornando a relação de emprego, ou o contrato CLT, algo inusual e obsoleta.
Tal medida impactará de forma profunda na efetividade do Direito do Trabalho, à medida que um simples contrato de prestação de serviços, mesmo que praticamente fictício, se mostrará suficiente a afastar a aplicação de suas regras e princípios no caso concreto.
Por fim, arrecadação para a Previdência Social brasileira restará ameaçada, comprometendo-se ainda mais o equilíbrio financeiro, com a migração de contratos de emprego para contratos “pejotizados”, em especial, aos sujeitos ao regime do MEI, o que tende a ser a maioria.
Nasser Ahmad Allan
Doutor em Direito pela UFPR. Advogado trabalhista e sindical em Curitiba, sócio de GASAM ADVOCACIA, Diretor do Instituto DECLATRA.