Sabem quem foi cancelado por comentário sobre a morte do extremista Charlie Kirk? Não, não falo do Eduardo “Peninha” Bueno, nem tudo gira em torno da nossa província gaúcha. O boato mais quente, pós manifestações ao assassinato do ativista da ultradireita norte-americana, foi que uma editora na Irlanda do Norte (Belfast Book) removeria os livros do escritor Stephen King de seu catálogo após ele fazer uma publicação dizendo que Kirk defendia o apedrejamento de gays.
O escritor de 77 anos, mundialmente conhecido por obras que foram para o cinema como It-A Coisa”, “O Iluminado”, “À Espera de Um Milagre” e “Carrie”, apagou a postagem e se desculpou pelo comentário nas suas redes sociais. Provavelmente sentiu que o influenciador de ultradireita seria transformado numa espécie de mártir dos valores ocidentais e não convém se desentender com seitas bem-organizadas.
O presidente Norte-americano Donald Trump assim anunciou a morte na rede Truth Social:
O grande, e mesmo lendário, Charlie Kirk, está morto. Ninguém entendeu ou tinha em mãos o coração da juventude dos EUA melhor do que Charlie
O influenciador tinha mais de cinco milhões de seguidores no X e apresentava um podcast e um programa de rádio nos quais defendia a supremacia branca, o direito a portar armas mesmo que o preço a pagar fosse de “algumas mortes”, além de um comportamento submisso para as mulheres, inclusive sem uso de anticoncepcionais.
A última palavra de Kirk, ativista determinante na campanha de Trump para mobilização de jovens eleitores, foi violência. Ocorre que mesmo com a orquestração em massa de conspirações de que o influenciador seria uma vítima da esquerda, o tiro partiu do fuzil de Tyler Robinson, rapaz branco, classe média, de 22 anos, de Utah, que teria confessado o crime em um bate-papo da rede Discord, antes mesmo da polícia prendê-lo, justificando que não aguentava mais o ódio de Kirk e que o pai tinha virado fã do MAGA.
Não havia consenso para o debate naquela manhã na Universidade. Mais de 100 mil assinaturas numa petição online pediam o cancelamento do encontro, mas a instituição manteve o evento citando seu “compromisso com a liberdade de expressão, a investigação intelectual e o diálogo construtivo”. Trump acusou a esquerda como culpada e avisou que haveria um avanço da violência política no país.
Aqui no Brasil, país que também mereceu a atenção de Charlie Kirk ao recomendar a Trump que adotasse sanções devido ao julgamento de Bolsonaro, as redes ferveram com o tema e as reações a ele. O assassinato do influenciador trumpista alimentou grupos bolsonaristas no WhatsApp e Telegram com mensagens que “transformam o episódio do atentado em um gatilho emocional e político, equiparando Kirk a uma figura de resistência”, sintetiza o monitoramento da empresa Palver, em mais de 100 mil comunidades digitais.
A circulação não se limitou à comoção, foi acompanhada ainda de teorias conspiratórias, como a de que o verdadeiro autor do crime não teria sido preso ou mesmo de que Kirk teria sido morto pelos próprios seguranças. Também emergiram narrativas que o apresentam como vítima de censura e perseguição. O episódio, segundo o levantamento da Palver, vem sendo usado para reforçar a narrativa de que a esquerda estaria por trás de diversos ataques, como a facada em Bolsonaro. Há ainda uma espécie de “caça às bruxas” contra perfis que teriam supostamente comemorado a morte do influenciador norte-americano.
Parlamentares bolsonaristas que nesta semana conseguiram aprovar salvo-conduto para possíveis criminosos com cargo no Congresso, passaram a denunciar reações de “esquerdistas” ao assassinato. O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) comemorou a revogação do visto de um médico que teria celebrado o assassinato, defendendo que a medida se estenda a “todos extremistas”. A esquerda parece paralisada diante do triunfo de uma direita enlouquecida e cada vez mais ousada. Como analisa o professor Luis Felipe Miguel, da UnB, numa série de artigos, a esquerda padece de um “possibilismo” paralisante e busca se afastar do desastre total em meio ao avanço do individualismo, da dissolução da identidade de classe, do apetite insaciável do capital e da debilitação do sentido de realidade.
Comentaristas da mídia corporativa e mesmo “especialistas” por eles convocados creditam à polarização esse agravamento da violência e da desconexão dos fatos. Será? Muitas análises ignoram todos os indícios e fatos que atrelam a radicalização ao extremismo da direita e do fascismo novo tipo. São pinçados exemplos e vítimas dos “dois lados” para forjar uma equidade que não se aplica e explicá-la com um conceito explorado de maneira simplista.
A culpa é mesmo da tal polarização?
Há na literatura mais recente, controvérsias e acordos sobre a polarização política, seus efeitos e seus aspectos midiáticos. Podemos definir que se trata de alinhamento extremo de posições contrapostas em função de uma identificação ideológica ou partidária. É um fenômeno bem demarcado em alguns países do mundo, como nos EUA, mas mais recente na América Latina. Ainda há debate se a polarização está circunscrita às elites políticas, intelectuais e midiáticas, ou se abrange a sociedade como um todo, especialmente por meio dos novos dispositivos digitais.
Considerando a primeira hipótese se trataria de um fenômeno aplicado aos atores políticos e a grupos/minorias com alta capacidade de mobilização. Já a segunda abordagem, compreende que se trata de uma divisão com efeitos graves na sociedade e como esta se relaciona com o debate público. Isso dependeria do modo como se mede a polarização e os tipos de objetos que ela aciona. Não é simples e não se resolve com uma enquete. Também podemos abordar a polarização a partir dos estudos de agenda e os temas acionados a partir da correlação entre opiniões e características socioculturais do público (raça, gênero, religião).
Nesse caso, dizem estudiosos, haveria uma polarização desigual na sociedade. De acordo com o estudo paradigmático de DiMaggio, Evans e Byson (1996) as diferenças entre o público norte-americano decresceram, com duas exceções: direitos reprodutivos (leia-se aborto) e a separação entre democratas e republicanos. Mas há quem interprete de outro modo e identifique maior polarização, agregando novas evidências, como o fato de que temas segregadores ou polarizantes configuram posições e identificações de modo mais eficaz (Baldasarri e Bearman, 2007).
Em resumo, a sociedade tende a dividir-se em temas polarizantes, apesar de haver acordo em outros temas. Não por acaso, esse tipo de pauta é acionada com maestria pelas estratégias de desinformação e táticas de pânico moral utilizadas pela extrema direita. A identificação partidária acaba sendo vetor também para posicionar os membros de determinados grupos antagonistas, que acabam por buscar distância e praticar o que seria polarização afetiva (Iyengar et al, 2012; Iyengar et al, 2019).
A polarização pode afetar o modo como se desenvolve o debate público e contribui para construir imagens estereotipadas e falsas realidades. Não à toa há investimento pesado nisso. Contudo, para que funcione, uma dimensão é muito relevante: a midiática. Vários estudos mostram que, durante décadas, grande parte da conversa política na sociedade ocorria entre aqueles que compartilhavam certos preceitos comuns e se consideram próximos (Tucker et al, 2018).
As redes sociais consolidam essa tendência a bolhas que levam os sujeitos a percorrer apenas os territórios onde seja dominante o próprio ponto de vista. As redes fomentam e reproduzem a polarização. Essa é recompensada, gratificada e, não raro, monetizada. Identidades se criam e solidificam, consolidando fronteiras com os outros. Isso impede uma qualidade cívica para discussão de assuntos comuns e democratização da sociedade.
Mas vejam, quem defende bolhas informativas, liberdade extrema das plataformas, segmentação e recompensa para conteúdos criminosos? Quem se utiliza melhor da nova dinâmica de crenças, emoções e religiosidade e investe no negacionismo?
A capacidade de disseminar discursos extremistas depende exclusivamente de meia dúzia de bilionários, donos das plataformas digitais mais importantes, que são as mesmas na maioria dos países do mundo. Portanto, não se trata apenas de algo que pode ser corrigido com bom senso individual e chamadas para a concórdia.
Como combater públicos desinformados se o próprio jornalismo pratica uma falsa equidade, mostrando supostos dois lados e ignorando a operação em marcha e a realidade de que a dinâmica das crenças mudou, o projeto moderno que propunha o modelo científico como o único conhecimento legítimo entrou em crise em tempos de pós verdade?
A imprensa precisa lidar com a erosão do seu modelo de negócios para públicos que não compartilham mais epistemologias e sim crenças e opiniões customizadas ao seu gosto. A verdade passou a ser apenas uma das opções possíveis (Waisbord, 2018).
O dilema da mídia hoje está entre o que relata (ou deve relatar) e o que seu público clica e compartilha. Fico pensando como seria noticiada, hoje, a célebre frase do saudoso Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição de 88 com “ódio e nojo à Ditadura”. Seria cancelado? Seria acomodado em um dos polos, desconhecendo os truculentos que sumiram, torturaram e mataram por anos em nosso país?
A verdade factual é que temos hoje um grupo truculento, criminoso e barulhento bem organizado em todo o mundo. É impossível clamar por paz e concórdia com o requisito de respeitar expressões fascistas. De fato, não se deve comemorar publicamente a morte de ninguém, embora como disse o pastor Howard-John Wesley, exausto das homenagens ao extremista assassinado, o modo como você morre não redime o jeito como você viveu.
O que é certo é que não podemos deixar morrer a democracia, mesmo esta liberal, imperfeita e cheia de lacunas. Por enquanto, ela significa nossa melhor chance.
Referências
Baldassarri, D y Bearman, P. (2007). Dynamics of Political Polarization.American Sociological Review, 72(5), 784-811.
DiMaggio, P., Evans, J., y Bryson, B. (1996). Have American’s social attitudes become more polarized?American journal of Sociology, 102(3), 690-755.
Iyengar, S., Sood, G., y Lelkes, Y. (2012). Affect, not ideology. A social identity perspective on polarization.Public Opinion Quarterly,76(3), 405-431
Schuliaquer, Iván , Vommaro, Gabriel- Introduction: political Polarization, Legacy Media and Social Media. Elements for a Research Agenda- Revista SAAP Volume 14,nº 2, 2020, Buenos Aires.
Waisbord, S. (2018a). Truth is what happens to news: On journalism, fake news, and post-truth.Journalism studies, 19(13), 1866-1878.