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O julgamento da história: STF, democracia e a virada de página do Brasil

(Foto: Gustavo Moreno/STF)

Em 136 anos de República o Brasil nunca havia chegado tão longe: punir, de forma efetiva, altas autoridades civis e militares por um crime de golpe de Estado. Essa marca, inscrita no julgamento da Ação Penal 2668 pelo Supremo Tribunal Federal, não é apenas uma decisão penal — é um acontecimento constitucional que encerra um ciclo de leniência histórica e inaugura outro, de responsabilização exemplar, neste 11 de setembro de 2025. 

Nesta data, torres não foram tombadas sob ataque injusto e criminoso como há 24 anos nos EUA. Ao contrário, alicerces da democracia brasileira foram reforçados pela resistência aos achaques internos do passado e externos do presente, sofridos, ontem e hoje pela Suprema Corte, seja pelos extremismos de direita nacional, seja pelo extremismo de direita do governo Donald Trump.

A democracia brasileira, tantas vezes ameaçada e vilipendiada, foi aqui defendida não pela força das armas, mas pela força da lei. O STF, guardião da Constituição (art. 102), exerceu sua jurisdição constitucional-penal na plenitude, demonstrando ao mundo que golpistas e golpes não mais passam sem resposta da justiça criminal em nosso País.

O processo foi conduzido com serenidade de formas e exemplaridade procedimental. Nenhuma outra corte do mundo julga em tempo real, sob os olhos atentos de uma nação, com tamanha transparência. Cada voto transmitido, cada argumento de defesa ouvido, cada fundamento registrado — tudo se fez na praça pública da democracia.

Como lembrou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, “ninguém sai feliz de um julgamento como este”, mas a missão histórica foi cumprida: provas fartas, contraditório assegurado, publicidade plena. É a demonstração de que o Estado de Direito responde às ameaças não com arbitrariedades, mas com a própria legalidade que se buscava abolir. E quem chama nosso País democrático de ditadura, está procurando uma ditadura para chamar de democracia, como afirma Reinaldo Azevedo.

Os votos de Alexandre de Moraes e Flávio Dino reafirmaram a gravidade constitucional e o cometimento dos crimes praticados, secundados por Carmem Lúcia e Cristiano Zanin. Provaram-se organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado, além de dano ao patrimônio público físico e tombado, no total de 05 crimes. As provas não eram indícios dispersos e desencontrados: tratava-se de uma sequência lógica, planejada e hierarquizada comportamental de muitos agentes, que envolveu atos executórios desde julho de 2021 — reuniões ministeriais, uso da PRF para coagir eleitores, mobilização de militares, milícias digitais e até planos de atentado a autoridades etc.

Foi afastada a perigosa ideia de que a farda ou o cargo conferem imunidade penal, pois além de Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos e três meses de prisão, a Primeira Turma do STF aplicou penas expressivas aos demais integrantes do chamado Núcleo Crucial do golpe. O general da reserva Walter Braga Netto recebeu 26 anos, seguido de Anderson Torres e do almirante Almir Garnier, ambos com 24 anos. O general Augusto Heleno foi sentenciado a 21 anos e o general Paulo Sérgio Nogueira a 19 anos. O deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin, recebeu 16 anos, um mês e 15 dias. Já o tenente-coronel Mauro Cid, colaborador da Justiça, obteve pena de 2 anos em regime aberto.

Com a condenação criminal pelo STF, Jair Bolsonaro passa a estar inelegível também pela alínea “e” do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/1990 (Lei da Ficha Limpa), por ter sido condenado, criminalmente, por órgão colegiado. Essa inelegibilidade perdurará enquanto houver recurso criminal pendente, seja de embargos de declaração, seja de embargos infringentes, já a partir do dia do encerramento do julgamento, ainda que não publicado o acórdão, durante o cumprimento da pena criminal e, após seu término, por mais oito anos adicionais.

Na prática, pelo texto da lei eleitoral — e não por força da decisão do Supremo —, o ex-presidente ficará inelegível por impressionantes 35 anos e 4 meses, só podendo voltar a disputar eleições, se vivo, saudável e viável estiver, após 2061. Some-se a isso o efeito direto decorrente da Constituição da República: enquanto cumprir a pena, Bolsonaro estará com os direitos políticos suspensos, nos termos do art. 15, III, o que inclui o direito de votar e de ser votado e de assumir alguns postos públicos de nomeação que exigem a regularidade dos direitos políticos. Isso pode inviabilizar, inclusive, a sua permanência de filiado no partido que lhe remunera por tal, o PL.

E não apenas: já estava inelegível até 2030 pela alínea “h” do mesmo artigo 1º da Lei da Ficha Limpa, em razão de condenação eleitoral colegiada anterior. O resultado é um quadro de apenamento político, em consequência dos efeitos da legislação, sem precedentes na história republicana. Isso, como vimos alertando desde sempre, deve levar a uma reflexão sobre as elevadas penas de inelegibilidade desenhadas na LC 65/90, inclusas pela LC 135/2010.

Importa sublinhar, ainda, que a anistia prevista na Constituição tem alcance estritamente penal-criminal. Ela pode extinguir ou afastar punições de natureza criminal, mas não alcança sanções de natureza jurídico-eleitoral. 

No campo eleitoral, fala-se em “anistia” apenas para os aspectos financeiros — sobretudo no perdão de multas eleitorais, em lógica semelhante à da anistia fiscal, que incide sobre juros e multas de contribuintes devedores. Não há, portanto, base constitucional para cogitar uma “anistia eleitoral” que elimine os efeitos de inelegibilidade decorrentes de sanções eleitorais ou não eleitorais. A inelegibilidade não é cancelada mesmo quando há indulto criminal, como prescreve a jurisprudência eleitoral, que a trata, equivocamente, como efeito secundário da condenação e não como deveria ser, efeito decorrente primário do sancionamento.

Nesse concerto histórico de justiça efetivada, porém, ecoou uma nota dissonante. O ministro Luiz Fux surpreendeu ao absolver seis dos réus, inclusive Bolsonaro, sob argumentos revestidos de um certo “garantismo tardio” do magistrado. Acatou as teses defensivas de incompetência do STF, cerceamento de defesa e inexistência de organização criminosa, classificando os atos como meras manifestações políticas sem consequências relevantes para o direito penal.

Para a comunidade jurídica, a incoerência foi flagrante. Fux, que em sua trajetória nada se notabilizou com postura garantista em habeas corpus e processos penais, evocou agora teses que soaram extemporâneas e até estranhas ao seu currículo judicante na Corte Suprema brasileira. 

Não poucos viram em seu agir certa deslealdade institucional com o STF e seus colegas de toga, uma tentativa de isolar-se deliberadamente de seus pares, talvez reflexo de pressões externas oriundas de Donald Trump — pressões às quais os demais ministros não se curvaram minimamente.

A tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado de Direito não se confunde, em sua estrutura tipológica, com delitos comuns, cujo iter crimines é sensivelmente menos complexo em seus elementos constitutivo-comportamentais. São crimes “constitucionais” complexos, que atingem o próprio coração do pacto republicano. Envolvem múltiplos agentes, planejamento estratégico e a utilização da máquina pública para corroer a ordem constitucional.

Por isso, a simplificação operada por Fux, ao negar a caracterização de organização criminosa ou ao reduzir atos executórios a “protestos políticos”, não atende às exigências do Direito Penal nem à jurisdição protetiva da Constituição.

O Supremo cumpriu, assim, sua missão histórica: interpretar os novos tipos penais inclusos na ordem penal por força da Lei 14.197 de 01.09.2021 à luz da Constituição de 1988 — “golpe de Estado” e “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” — não como fórmulas abstratas, mas como instrumentos de preservação do regime democrático.

E aqui se encontra a lição mais eloquente ao mundo: mesmo sob pressões externas inéditas, com o governo dos Estados Unidos sancionando o País e Ministros, ameaçando de represálias outras autoridades, tentando forçar um desfecho contrário à lei e à prova, a Suprema Corte brasileira manteve-se firme, independente e soberana. 

A Nação brasileira, que tantas vezes teve suas instituições mau avaliadas quando comparadas com as instituições norte-americanas, seja por brasileiros, seja por estadunidenses, deu agora uma lição ao seu algoz e ao planeta: a independência judicial resiste e se impõe em solo onde flamula a bandeira verde amarela. 

E nesse solo tupiniquim nosso Judiciário está funcionando melhor e com mais eficácia do que o dos EUA, ainda que destacadamente no capítulo de contenção de um autocrata no exercício tresloucado da Presidência da República.

O Brasil virou uma página triste de sua história. Do ciclo de leniências, pactos de silêncio e anistias indevidas, passa-se agora a um constitucionalismo punitivo contra a subversão da democracia, a um penalismo pró estado de democrático de direito. Que a lição permaneça: nenhum cargo, nenhuma farda, nenhum mandato autoriza a tentativa de derrubar a Constituição.

O Supremo Tribunal Federal reafirmou-se como último bastião da legalidade (como dizia Rui Barbosa) e, nesta decisão, projetou ao futuro um Brasil que não aceita mais a tentação do golpismo. E mais, insistamos: ofereceu ao mundo — e em especial ao próprio EUA, que tentara macular o processo — um exemplo histórico de dignidade constitucional. Uma democracia que defende a si mesma, pela força da lei e da razão pública e república, de forma soberana e independente, como deve ser, como todos esperamos.

Desterro, “Ondina de Cruz e Souza”, Ilha Capital de SC, 12.09.2025. 16h27.

Ruy Samuel Espíndola – Advogado publicista, Professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral, Membro da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Acácio Bernardes.

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