Um dos pais da literatura brasileira de formação repousa agora no cemitério São Miguel e Almas de Porto Alegre. O escritor Luiz Fernando Veríssimo faleceu na madrugada de sábado, dia 30 desse final de mês de agosto, e foi enterrado no início da noite. Parafraseando político mineiro, Veríssimo só está enterrado para os ingratos. Ele é sempre redivivo por uma geração que viveu a luta dos anos de 1970.
Como todo grande formador, escreveu e desenhou sem pretensão de ser o imortal autor de personagens que mimetizavam a realidade política e criador de tipos nacionais que formavam a ‘família Brasil’, mas que estavam fora do circuito Cachmere Bouquet pelo qual transitava a cultura influenciadora do chamado Sul Maravilha. Veríssimo era gaúcho de Porto Alegre.
O humor conduziu a pena fina que destilava artilharia pesada. Quantos não recorreram às Cobras quando não encontravam a melhor tradução dos acontecimentos nos chamados textos clássicos de referência. Por exemplo, a dupla de cobrinhas críticas e antenadas. Em uma das historietas, elas encontram o cobra chef de cozinha Rien à manger (Nada para comer) com uma bandeja suspensa em uma das mãos. Perguntam o que havia de bom.
Coquilles Saint-Jacques
respondeu o chef francês.
As cobrinhas curiosas pediram para ver, e não havia nada quando a bandeja baixou. Olhos arregalados de surpresa, as cobrinhas indagaram onde estavam as conchas com o molusco vieira. Ao que Rien à manger, tranquilo, ponderou:
Saint-Jacques proverá
E o analista de Bagé, município do Rio Grande do Sul fronteiriço com Uruguai? Personagem antropofágico que imprimiu caráter gauchesco na psicanálise europeia e criou o método terapêutico do ‘joelhaço’. Ganhou livro, cinema, peça teatral, e estátua na Praça da Estação de Bagé. No livro ‘Todas as histórias do Analista de Bagé’, lançado em 1994 e dividido em capítulos, Veríssimo explica a origem e o perfil do profissional bajeense.
Em entrevista fictícia concedida em um “congresso de psicanalistas em Paris – que é uma espécie de Bagé com metrô” – o analista explicou a inspiração e o sentido da sua Técnica do Joelhaço, “bastante heterodoxa, a depender do ponto de vista”.
Ela está baseada no princípio da dor maior, isto é, quando o paciente vem se queixar de suas dores subjetivas, o joelhaço aplicado no local correto oferece ao sujeito a vivência de uma dor tão mais intensa que faz com que se esqueça das dores ‘menores’
Seguem alguns capítulos das histórias do Analista de Bagé:
Raízes
“Pouco se sabe da vida pregressa — ou “os antes”, como ele mesmo diria – do analista de Bagé. Embora hoje tenha consultório na cidade grande e só atenda neuróticos importantes, cobrando muito e por minuto – segundo ele, “que é pra ninguém se aboleta e inventar de passar o dia” -, o analista de Bagé teve um começo difícil. Contam, inclusive, que ele percorria o interior do Rio Grande do Sul numa charrete, com um divã portátil, oferecendo tratamento de porta de estância em porta de estância.
– Buenas!
– Como lê vai?
– Par aí, gauderiando más que cigano e candidato.
– Pos se apeie e tome um mate.
– Pos aceito. Sou como china passada, não arreganho convite. E tou com a goela más seca que penico de cego.
– Oigatê. O amigo vende o quê?
– Pos sou psicanalista, tchê.
– Oigatê. Por aqui já apareceu até maranhense. Psicanalista é o primeiro.
– Sou freudiano e não renego.
– Freudiano, então, nem se fala.
– Será que não tem na casa alguém precisando de uma sessão? Cinquenta minutos e aceito pagamento em charque.
– Pos a Orestina…
– Que tem?
– Anda com riso frouxo
– Sei.
– Ri sozinha.
– Que cosa.
– Qualquer cosa, se arreganha.
– Não é cócega?
– Pos não é.
– Que idade tem a bicha?
– Dezessete.
– Essa não tem nada.
– Mas ri até de topada.
– É da idade.
– E ela não corre perigo?
– Só de engravidá.
Ao contrário do que se pensa, o analista de Bagé mantém-se a par de todos os desenvolvimentos na área da psiquiatria, embora se declare ‘freudiano de oito costados’ e ‘más ortodoxo que pomada Minâncora’. Ele tem uma boa e atualizada biblioteca que consulta com frequência. Sempre que pega um caso mais difícil, no entanto, o analista de Bagé recorre a um grosso volume em alemão na estante do seu consultório. É entre suas páginas que guarda, escritas a toco de lápis em folhas soltas de um caderno de armazém, as máximas do seu pai, o velho Adão. (…), que muitas vezes sugerem uma saída. ( …) .
Mas bá
Contam que o analista de Bagé, embora se declare “mais antigo que emplastro” e freudiano de usar carteirinha, não renega as novas técnicas de análise. Inclusive, inventou algumas. Segundo ele, o que vai longe sem sair do lugar é trilho. É preciso dinamizar a análise. Não se concebe mais que o paciente fale enquanto o analista cochila. Por isto, depois de inventar a análise em grupo com gaiteiro, “pra indiada se soltá”, ele está experimentando com sessões externas ou “à Ia fresca”, durante as quais paciente e analista saem à rua, e a análise é feita em qualquer lugar, num banco de praça, até num balcão de cafezinho.
– Ainda estou na fase anal-retentiva, doutor. Tenho esta obsessão infantil em não dar nada, nunca, a ninguém.
– Mas que cosa. Me passa o açúcar.
– Não passo.
As sessões de rua são boas para o paciente, pois ele foge da passividade um pouco humilhante do divã. (Se bem que o analista de Bagé adaptou um mecanismo de cadeira de dentista ao seu divã que, nos casos de complexo de inferioridade, vai ficando mais alto ao longo da sessão.
Controlo a altura na alpargata, e o coitadito pensa que melhorou.”)
Para o analista também é bom, porque ele pode, por exemplo, ir ao banco e dar consulta ao mesmo tempo. Mas o que tem dado resultado mesmo são as análises no campo. Dependendo do caso, o analista de Bagé leva o paciente a caminhar no parque ou subir em morro. Ele nasceu na campanha e costuma dizer que é homem “de quatro horizontes”. E quando o paciente dá sinais de estar muito angustiado pela vida urbana, o analista de Bagé grita para Lindaura, sua recepcionista:
Prepara os isopor, que este é caso de piquenique
Aliás, ele diz que é tradicionalista de botar o Paixão num bolso e o Barbosa Lessa no outro, mas que hoje em dia não se admite gaúcho autêntico sem garrafa térmica. E vão pro mato. Foi sentado debaixo de uma figueira, mastigando um talo, que o analista de Bagé ouviu a sua paciente – “mais linda que manta de charque gordo”, como diria depois – declarar que não conseguia sentir prazer com homem algum, a não ser que houvesse a ameaça de punição. O analista de Bagé tentou manter o distanciamento clínico, mas estava batendo sol na bombacha e não deu. Olhou rapidamente em volta e avistou um relvado na forma de uma cama redonda. Deus existe, pensou, e Freud está à sua direita, anotando tudo. Sutilmente, o analista de Bagé sugeriu:
– Tira a roupa.
– Serei punida, depois?
– Mas bá.
– Como? Pelo sentimento de culpa?
– Não.
– Desenvolverei uma neurose? Meu ego, que exige a punição, combaterá meu id, que quer ser satisfeito a qualquer custo, mesmo sabendo que ter relações com meu analista, que personifica o meu superego, não me causará culpa, pois posso racionalizá-las como terapia de apoio? Será esse o meu castigo?
– Não.
– Então qual?
– Urticária.
– Oba.
Metade cavalo
No começo de sua carreira, o analista de Bagé também era chamado para atender casos a domicilio. Como na vez em que um peão foi chamar o analista no meio da noite. Era para o seu patrão, seu Vespasiano. Enquanto encilhava o cavalo, o analista de Bagé pediu detalhes sobre o caso. O peão contou que seu Vespasiano tava variando.
– Pensa que é metade gente, metade animal.
– Que animal?
– Cavalo.
– Que pêlo?
– Castanho.
– Que metade?
– A de baixo.
– Bueno. Pelo menos vou poder charlar com o homem.
Chegaram na estância quase de manhãzinha. Seu Vespasiano já estava de pé, Mastigando seu milho. Recebeu o analista de Bagé com desconfiança.
– Que lê traz aqui?
Pôs vim olhar a sua tropa. Um cavalo meu desgarrou pra estas bandas.
– E tu cria cavalo no consultório, tchê?
– Tem cliente que só a patada.
– Pôs seu cavalo não ta aqui.
– Só vendo.
Saíram para o campo. O analista de Bagé a cavalo e o seu Vespasiano galopando do seu lado. Olharam toda a tropa. Aí o analista começou a examinar seu Vespasiano de cima a baixo.
– Tá me olhando por quê? – quis saber seu Vespasiano, carrancudo.
– Acho que to reconhecendo meu castanho.
– Endoidou? Eu sou o Vespasiano.
– Só até a cintura.
– Pra baixo também é meu.
– Então mostra a marca.
– O quê?
– Quero ver a marca na anca. Se não ta marcado, é meu.
A discussão ainda durou um pouco, mas no fim seu Vespasiano se convenceu que não era metade cavalo. Lamentou bastante porque daquele jeito estava economizando montaria. Mas a família suspirou aliviada. Não aguentava mais a bosta no tapete.
Técnica do joelhaço
(…) Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como ‘freudiano barbaridade’. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarregá energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.
— Te abanca, índio velho, que tá incluído no preço.
— Ai — diz o paciente.
— Toma um mate?
— Nã-não… — geme o paciente.
— Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
— Agora, qual é o causo?
— É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
— Tô te ouvindo — diz.
— É uma coisa existencial, entende?
— Continua, no más.
— Começo a pensar, assim, na finitude humana em contraste com o infinito cósmico…
— Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
— E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana. E isso me angustia.
— Pos vamos dar um jeito nisso agorita — diz o analista de Bagé, com uma baforada.
— O senhor vai curar a minha angústia?
— Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
— Mudar o mundo?
— Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
— Mas… Isso é impossível!
— Ainda bem que tu reconhece, animal!
— Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
— Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
— Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta…
— Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
— Me alimento.
— Tem casa com galpão?
— Bem… Apartamento.
— Não é veado?
— Não.
— Tá com os carnê em dia?
— Estou.
— Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
— O Freud não me diria isso.
— O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
— Não.
— Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
— Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :
— É pior que joelhaço?”
Jornalismo é profissão esquisita.
Uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada pela verificação das duras realidades
já disse um Nobel de Literatura que começou a vida como jornalista.
Falar de Veríssimo a partir do legado que deixou é uma dessas digestões humanizantes que em lugar de lágrimas proporciona boas risadas. Mas que deixa saudade, ah, isso deixa, tchê. E touché.