Jota Marques
Desde que me reconheço como pardo, convivo com olhares que me dizem: não sou branco o bastante, nem negro o bastante. Essa ambiguidade é real, atravessa a minha vida e sei que atravessa a vida de milhões de brasileiros. Mas se existe uma pergunta que precisamos fazer em 2025, é esta: a quem interessa o fim do negro?
O Brasil sempre teve uma resposta pronta. Interessa ao poder. Interessa à branquitude. Interessa à ordem social que nasceu da escravidão e que nunca deixou de organizar os nossos lugares. Desde a abolição inconclusa, o projeto foi o mesmo: dissolver a identidade negra. Primeiro pelo branqueamento, com a chegada de milhões de imigrantes europeus para “melhorar” o povo. Depois pelo mito da democracia racial, que prometia uma harmonia inexistente e escondia desigualdade atrás da palavra mestiçagem.
Hoje, o mesmo projeto ressurge com novas roupas. Chama-se parditude.
Não me entenda mal. Eu sei, na pele, o que é ser pardo num país racista. Sei o que é ser questionado, sei o que é não caber inteiro em lugar nenhum. Essa dor é real. Mas transformar esse sofrimento em uma identidade política separada não é emancipação. É uma armadilha.
Por quê? Porque divide aquilo que o movimento negro sempre lutou para manter unido. Desde o século 20, negros no Brasil escolheram se nomear como coletivo: pretos e pardos juntos. Essa unidade não foi uma invenção teórica. Foi uma estratégia política para enfrentar o racismo estrutural. Foi ela que sustentou as denúncias do genocídio da juventude negra, que conquistou cotas e ações afirmativas, que deu voz a um povo historicamente silenciado.
Romper com essa aliança agora interessa a quem? Não a nós, pardos e pretos que sofremos, de modos diferentes, a mesma violência estrutural. Interessa a quem sempre lucrou com a fragmentação. Interessa à branquitude.
A chamada parditude oferece uma saída confortável para a ordem racial. Funciona como desculpa para pessoas brancas que querem se refugiar na mestiçagem e escapar de reconhecer seus privilégios. Alimenta ressentimentos dentro da própria comunidade negra. E, acima de tudo, confunde o campo de luta.
Não digo isso como quem nega a experiência parda. Digo como alguém que a sente na pele. A ambiguidade é real, mas ela não precisa ser traduzida em categoria racial nova. Ela precisa ser transformada em potência coletiva. O desafio não é multiplicar divisões, e sim reconhecer nossas diferenças internas sem abrir mão da unidade. Isso significa aprimorar políticas de heteroidentificação, enfrentar o colorismo dentro da comunidade negra e corrigir injustiças. Mas sem desmontar o pacto político que nos fez avançar.
O fim do negro sempre foi o sonho da supremacia branca. É isso que está em jogo quando tentam dissolver a negritude em nomes novos e identidades fragmentadas.
Por isso digo: não aceito. Não aceito que a minha dor seja usada para dividir. Não aceito que ser pardo seja desculpa para apagar o negro. Não aceito que a branquitude dite novamente os termos do nosso pertencimento.
Porque o negro não acaba. O negro resiste. O negro se reinventa. E eu, como pardo, afirmo: o negro é coletivo.
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